domingo, 23 de dezembro de 2012

Corações Amaralados


Amaram-se no cais
de um tempo feliz
onde amar era futuro.
Para onde partiam os dias
em rodopios, inebriantes,
a embalar os amantes,
fazendo-os acreditar
que o tempo é brincar.

Mas corroídos de paz 
e de prazer fugaz,
amam-se em cômodos dias,
ciente das horas, carentes de mais.

Consumidos e reféns,
os amantes resistem.
O olhar cúmplice suplica
o amor, que outro explicito, agora é tácito.
Agora é tarde:
resta-lhes o clarão
aberto pelo fogo
que um dia foi paixão.

Das chamas restou apenas chão.
por onde pisam pés doloridos, 
corações partidos, em outra direção.
Um encontra outro cais, onde, com receio de navegar, ancora seu coração.
O outro insufla o ar, dor de dias amarelados.
Num voo para o precipício da amores sepultados,
rufla seu coração amado, alado, calado.


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O tempo da voz


Uma força estranha anuncia:
quanto tempo tem a melodia
que embala a letra da canção?
Nada importa! Latente é a emoção.

De repente o arrepio ao ouvir sua voz
Diz-me que o tempo é apenas veloz.
Separa o hoje do ontem e do após.

No calendário sem data,
o que é atroz o tempo mata.
Perene e fatal é a voz aguda de Gal.
Penetra e toca nossa alma tropical.


                                                                       Força Estranha - Gal Costa (*)

(*) Link da gravação do show "Maria da Graça Costa Penna Burgos", de 1981.


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Máscara d'água


Enverga a máscara cuja marca lhe conforma a alma.
Por demasiado usá-la, pensa ser aquele que encena.
No palco de um teatro insano, os outros são o tema
de uma peça que teima em cobrir-lhe a face oculta.

Com a cortina sempre aberta
não percebe a encenação bufa.
Até então tudo é verdade e cena.
Esquece-se da máscara, é a persona.

Mas o ato se encerra e a cortina fecha.
No camarim de espelho e lâmpada
não se vê o reflexo escondido.
Desmascarado, tudo fica amorfo e ridículo.

Melhor é pô-la novamente.
O público clama pelo avatar que mente.
Ei-lo, com uma máscara na alma
e na face um espelho d'água turva.


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A Palavra

A mansidão inexorável do tempo pode assolar desejos, destruir anseios e deixar a alma seca de vontade. Daí que surgem alguns imperdoáveis hiatos que enguiçam a vida. Uma pessoa querida que, mesmo próxima, não se vê por longos períodos. Um desejo aguardando o momento de se satisfazer. Um amor do qual se desiste em razão da improvável conquista. Dizem que tudo tem o seu tempo. Acho mesmo que o tempo tem o seu tudo.

O meu particular tempo da escrita neste blog teve outro longo hiato. Uma fenda abriu-se e nela me afundei, pois tudo ficou novamente cômodo, quieto e estéril, como são os dias em que um escritor (no meu caso por gosto e não por profissão) deixa de lado a sua escrita. Lá no fundo fiquei escondido, protegido, sobretudo de mim mesmo. O pensamento ficou calado e os dias fluíram na monotonia dos afazeres cotidianos. Desse modo, lá no meu porão empoeirado de ideias não precisava lidar com a dor e o prazer do pensamento que sai na linha da escrita. Ambos se anulavam, pois de que valia escrever se o prazer e a dor não serviam nem para consumo próprio? Quem escreve quer luz, quer extravasar-se, quer vento forte balançando as ideias e levando-as para outros lerem. Durante alguns meses permaneci latente, como uma semente esperando para geminar. Longos dias sem água, lá ficou a semente sem luz e sem vento, caída num canto qualquer da alma.

Mas choveu. Choveram palavras. Os textos deste modesto blog fizeram surgir um convite para escrever uma coluna em um jornal lá da minha distante e saudosa cidade natal, Alegre, no sul do Espírito Santo. O jornal chama-se mesmo "A Palavra" e caiu como uma branda chuva, que fez renascer a minha semente seca de palavras. Germinei novamente e compartilho aqui a primeira folha verde. Agora é tentar não secar outra vez, mesmo diante das prováveis estiagens e invernos rigorosos. Desejo mesmo é ter fortes troncos para alcançar permanentemente o meu céu e, quem sabe, extravasar-me em frondosos amontoados de palavras.





terça-feira, 17 de julho de 2012

meia saudade


a parte partida que parte
disse à que fica
em despedida
que sentirá meia saudade

antes de formar o inteiro
partilhavam o vazio
mas a cidade juntou o imperfeito
e fez surgir um amor estrangeiro

a parte partida que fica
doravante, sempre aguardará a outra
para juntas, bifronte, jamais sentirem
a dor da inteira saudade na despedida

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Onde a Terra acaba


Com a alma mais leve e a mochila ainda pesada, regressei a Santiago. Após o término do período letivo em Coimbra, a alma aliviou-se dos encargos acadêmicos, que me consumiram energias excessivas. A mochila, bem..., creio que um dia conseguirei adequar seu peso às minhas reais necessidades. O "mantra do desapego" precisa ser repetido com mais convicção!

Por que novamente Santiago?
(Para quem ainda não leu, seria interessante a leitura prévia de o Caminho)

Aquela frase que encontrei gravada na pedra durante o caminho ("Santiago és el principio"), para além da metáfora de uma nova vida após a peregrinação, ecoava em minha mente chamando-me de volta. Fiz coro à expressão cunhada pelos séculos: "a Santiago volta-se sempre". A nove dias de regressar ao Brasil, não resisti ao eco. Arrumei minha mochila e retornei à cidade que me recebeu ao fim de uma breve vida como peregrino, que expirou após dolorosos e felizes 220 quilômetros. Nada de eco nem metáfora, desta vez Santiago não foi meu destino, mas de fato o princípio. O princípio de uma nova jornada que decidi iniciar às 07 horas de uma silenciosa terça-feira de julho.

Devidamente equipado e com o espírito de um peregrino, novamente me postei em frente à Catedral de Santiago. Era uma manhã fria e a cidade estava deserta. Senti o peso dos anos na fina névoa que delicadamente envolvia as ruelas milenares feitas de pedra e fé. De costas ao sol nascente, iniciei os passos em direção ao "fim da Terra". Que nem é tão longe assim. Fica a cerca de 87 quilômetros de onde eu estava. Até lá, desabrochava-se a cada passo adiante uma nova vida peregrina, de brevíssimos três dias pelas terras da Galícia.

A rota de peregrinação religiosa a Santiago existe há pelo menos 12 séculos, desde quando, próximo àquele local, como relatei no texto acima referenciado, foram encontrados os restos mortais do apóstolo de Cristo, São Tiago. Porém, mesmo antes dessa descoberta, ocorrida no século IX, que oportunamente trouxe um eixo de peregrinação cristã à Península Ibérica, recém ocupada pelos árabes desde 711, havia relatos de uma rota de peregrinação coincidente, realizada pelos celtas, o antigo povo que habitava aquela região. Muito antes da chegada dos romanos ou dos cristãos, o sol era então o seu objeto de adoração. Para reverenciá-lo, onde "inexplicavelmente" ele se afogava no mar sem fim, percorriam a trajetória terrestre equivalente ao percurso que vai da aurora ao crepúsculo. E mais ou menos sobre esse trajeto surgiu posteriormente o caminho de Santiago de Compostela.

O pensamento que se tinha durante a Antiguidade, que se estende, cronologicamente, até a Queda do Império Romano do Ocidente, no século V d. C., era de que o mundo terminava onde Europa encontrava o tenebroso Oceano Atlântico, que naquela época ainda nem tinha esse nome. O lugar onde achavam que a Terra acabava era uma península no extremo ocidente de uma região que os romanos chamavam de Gallaecia (hoje, Galícia). Deram-lhe o nome de Finnis Terrae ("fim da Terra"), ou, Finisterre, como hoje chamam a cidade que lá existe. É aí que fui parar. Em três dias, 87 quilômetros e pensamentos chacoalhados pelos passos passados sozinho, cheguei ao lugar onde pensou-se, um dia, que o mundo acabava.



Quanto à inevitável comparação entre o caminho de Santiago e o caminho de Finisterre, além da evidente menor distância, percebi que ambos são semelhantes. A Galícia continua linda e tudo é muito bem sinalizado e estruturado. Mas o que senti mesmo foi a falta de uma boa companhia. Caminhei sozinho durante todo o percurso, apenas cumprimentando os demais peregrinos. Quando minha meta era Santiago, tive a sorte de contar com a aprazível presença de dois amigos, Ricardo e Bárbara. Pegava-me a rir sozinho ao lembrar de nossas brincadeiras e bobagens. E sentia falta do olhar cúmplice que sem nada a dizer, motivava a caminhada. Mas, quando deixei Santiago para trás, foi em solidão que cheguei ao "fim do mundo". Além de descobrir que não sou tão interessante para ficar a sós demasiado tempo comigo mesmo, percebi que os caminhos de Santiago (e da vida) não tem graça quando percorridos solitariamente o tempo todo. Fora os momentos de reflexão, necessários ao conhecimento próprio, é na companhia humana que tudo fica mais divertido e menos pesado.

Faz alguns meses que vi pela televisão o depoimento de uma senhora muito alegre que já realiza a peregrinação à cidade de Fátima há dez anos. Diferentemente dos Caminhos de Santiago, essa peregrinação parece ter, exclusivamente, um caráter religioso. O repórter lhe perguntou o que a motivava realizar tantas vezes a mesma e sofrida peregrinação. Muito disposta e sorridente, respondeu-lhe que era a companhia de seus amigos durante a caminhada e as relações de solidariedade e cuidado que se estabeleciam entre eles. O repórter, buscando extrair o vínculo religioso às repetidas peregrinações daquela simpática senhora, indagou: "Haveria razão para a senhora realizar a peregrinação sozinha?". Ela sorriu serenamente e respondeu um delicado e eloquente: "não!". Comovi-me com a resposta mais cristã que já ouvi.

Além dos passos solitários, desta vez desvinculei-me da história de Santiago e voltei-me para a terra por onde pisava. Afinal, eu estava indo para o fim dela. Vindos de todas as partes da Europa, os caminhos a Santiago, e ao "fim da Terra", desembocam na Galícia, uma região ao noroeste da Espanha. Além do deslumbramento por sua beleza natural, que tentei expressar em "o Caminho", fascinei-me também pela sua história e cultura, tão ricas e particulares que, caso não fossem os acontecimentos políticos do passado, seriam suficientes para constituir um país autônomo. Tanto que com a crise que ronda por lá, vi cartazes pelas ruas de Santiago conclamando a população a se articular para a independência da Galícia. Hum, já viu aonde isso vai dar!

Mas voltando à cultura galega, chamou-me atenção o seu idioma. Foi uma surpresa constatar a sua semelhança com a Língua Portuguesa. Intrigado, fui então descobrir que no passado medieval, a região romana da Gallaecia, pós-ocupada pelos "bárbaros", também incluía boa parte do atual território português. Num acerto entre famílias nobres da região, a parte sul foi cedida a D. Afonso Henriques, que em 1139 tornou-se o primeiro rei de Portugal, reconhecido então como um reino, cujo limite, ao norte, passou a coincidir com o Rio Minho. Desde então, Portugal autonomizou-se em cultura e idioma próprios, tornando-se o país que, três séculos depois, contribuiu para tirar da Galícia o status de "fim da Terra". Além disso, a Galícia não conseguiu resistir à força de ocupação da coroa de Leão e Castela, permanecendo integrada ao território que, posteriormente, configurou-se na atual Espanha. Mas o idioma resistiu bravamente e ainda hoje lá não se fala o castelhano, mas o galego. Quer ter uma noção de como é o galego? Duas breves lições: primeira, troque os "j" e "g" por "X" (o som torna-se de fato mais parecido com o Português); segunda, Finisterre é Fisterra.



Aqui, placa do Governo em Galego, seguido da "tradução" em Castelhano.

Da aventura de se chegar ao "fim da Terra" há ainda muito por dizer. Por não querer enfadar, o que restou não dito fica para outro momento. Por ora, o que aqui se encontra é suficiente para, pelo menos, tornar o "galego" mais do que um simples qualificador do popular limão.

Finalizo com uma confissão pública: enamorei-me por esta terra chamada Galícia. Por cujos caminhos a atravessei de oriente a ocidente. Na verdade, a Galícia é que me atravessou, expondo-me à percepção de uma vida com mais simplicidade e emoção. Desde que voltei de lá, inexplicavelmente desatei a fazer poesia. Nosso romance pode ter sido efêmero, mas nossa poesia é eterna.


POEMA GALEGO

Gracia Galícia,
Por deixar-me pisar a tua negra carne
e beber o teu sangue de riachos cristalinos.
Foi como peregrino que toquei tua epiderme
e pulsei por entre teus caminhos,
as veias e artérias por onde fluem a emoção
dos que buscam Santiago, o teu santo coração.

Gracia Galícia,
Por encontrar-me em teus caminhos
marcados por setas amarelas.
Que no lúdico devaneio de passos doloridos
transformaram-se em d'alvas estrelas
a orientar minhas insones noites frias.

Gracia Galícia,
Por lavar-me os olhos
quando diante de ti
tantas vezes chorei e emudeci.
E assim, calado,
as novas vistas avistaram
o espetáculo comum e cotidiano
de um nascente mundo clarificado
pela tua luz que vem do atlântico oceano.

Caminhando por ti, fui ao fim da Terra
tentar avistar meu horizonte perdido de liberdade.
Ora, se a Terra lá não acaba de verdade
permaneço então na eterna descoberta
de quem eu poderia ter sido
caso não fosse o equívoco
de viver conforme pensam
aqueles que de mim nada sabem.
Pois se soubessem talvez teriam a compaixão
da dor sentida por desviar-me do padrão
dos que pensam que a vida
é só comida, labuta e reprodução.

Caminhando por ti, cheguei ao fim da minha terra
e mirei o abismo onde eu acabo.
É lá que caem as lágrimas que salgam
o meu onírico e revolto oceano.

Grata Galícia,
Disseram que em ti o mundo acabava
e sol no mar se afogava.
Tudo mentira.
Para além do horizonte
o sol ainda brilha.
E o mundo, dourado e exuberante,
após conhecer-te
renasce em mim a cada passo adiante.


domingo, 8 de julho de 2012

Letra


A letra é a molécula da língua mole e úmida,
que tanto lambe palavras quentes numa orelha fria
quanto vocifera a ira demente de uma mente em fúria.

Partícula sem sentido.
Elemento que desvela o sentimento,
indizível, não fosse esse amálgama,
invisível, que é a palavra 
na língua de quem ama.

Mas cuidado:
escarlate ou rubra,
marca a vaca e a bruxa;
na sopa ou no livro, 
alimenta e sacia;
faz da palavra a arma
que cala, sela e mata.

Ora, o que tudo isso importa?
Todas as letras cumprem seu destino:
encher páginas e ouvidos
com tudo que é humano e divino.

Juntando-as, faz-se até poesia.



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Peleja


Pelejo com algo que não vejo.
Ao procurá-lo, em busca do sentimento,
revolvo o chão de onde, suponho, penso.

Mas pensar de nada vale
quando o que em mim cabe
é tanto frágil, intáctil e efêmero.

Tanto esforço faz-me inquieto e atento,
àquilo que eu fora antes de por em marcha o pensamento.
Mas incrustado em grossas crostas de sonhos indizíveis,
permaneço ausente, incompleto e demente.

Com pinça e bisturi
perscruto a filigrana 
do lugar onde um dia existi,
sem culpa, pecado e tormento.

Ora, quem há de ser capaz
de pensar o que sente?
Só aquele que desmente
tudo que é diáfano, humano e fugaz.

Quando sinto, é em desterro.
Longe de mim, lá onde esqueço,
lá onde está o pensamento, ao avesso.
Pelejo com algo que não vejo.

Caminho de Santiago - Maio/2012

domingo, 17 de junho de 2012

Casamata


Na madorna da noite insone
regressei ao vilarejo imaginário.
Aquele onde um dia estive,
no desvão de uma mente frágil.

A rua que o atravessa
sai de mim e vai ao nada.
Não há placa que indique
o fim nem a chegada.

Fica longe, tão longe, que lá chego desfeito.
Vejo que nas casas toda a gente já não está.
Pergunto então ao prefeito
o que se deu por lá.

Disse que todos, do padre ao pedreiro,
saíram e puseram-se a andar.
Na avenida de margem infinita
sumiram para não mais voltar.

Ao perguntar o motivo do desvario,
vi que o prefeito, legitimamente eleito,
sozinho, sem povo e sem palanque,
discursava aos bichos de modo elegante.

O que deu em todos que nessa vila habitavam?
Cansaram-se das regras cotidianas?
Ao entrar numa casamata, vi um lar de plantas.
No chão de raízes e no teto de folhas procurei por vestígios.

Mas nada havia, além da harmonia.
Um tronco era o pai de família.
A seiva, mãe de filhos verdes,
alimentava a prole faminta.

Sem respostas ao enigma,
regressei à rua deserta, onde tudo ainda é mistério.
Surpreendi-me com um menino,
a brincar com pedras na margem do rio.

Sentei ao seu lado.
Ele não notou minha presença.
Brincava como se nada estivesse errado.
Sozinho, entretinha-se em seu mundo de criança

A inocência e a natureza,
era o que havia no vilarejo inaudito.
De tudo restou a pureza.
Acordei, e agora a cidade perde o sentido.


Caminho de Santiago - Maio/2012

sábado, 16 de junho de 2012

Soneto do descaminho



Cheio de si, resolveu descaminhar.
Por ímpeto e transgressão,
hasteou a vela do coração.
Decidiu navegar.


No oceano sem instrumentos,
pôs-se a caminho sem saber o norte.
Náufrago de sentimentos,
Quis voltar à segurança do monte.


Já não há mais chance.
A costa está longe.
Resta-lhe o mar, sem ponte.


No delírio do sol a pino,
mergulhou em águas profundas.
Achou-se novamente, agora em desatino.


Torre de Belém - Lisboa /Janeiro 2010

terça-feira, 5 de junho de 2012

o Caminho


O Cebreiro - Caminho de Santiago - Maio/2012

Aonde você vai com tanta pressa?

- Na correria de sempre. Trabalho, faculdade, contas a pagar...

Sente-se, vamos tomar um café juntos.

- Está bem, estou mesmo precisando. Mas me diga, como foi o passeio?

Não fiz um passeio, fiz uma peregrinaçao.

- E qual a diferença?

Olha, diz o dicionário que peregrinação é o ato de peregrinar, ou seja, participar de uma viagem em romaria a lugares santos e de devoção. Durante nove dias eu e mais dois amigos decidimos ser peregrinos. Como te disse na semana passada, percorremos a pé um trecho de 220 km do Caminho de Santiago, que sai da França e atravessa toda a Espanha. São muitos os caminhos a Santiago - dizem que o caminho começa de fato na porta da casa de quem decide lá ir -, mas o chamado "Caminho Francês", que sai da cidade de Saint Jean Pied de Port, com cerca de 800 km, é o mais famoso e pode ser considerado o tronco que recebe todos os demais caminhos europeus a Santiago. Veja esses dois mapas que trouxe da viagem:


Eu e meus amigos saímos da cidade de Ponferrada, que neste mapa aqui é a última cidade antes de Santiago, marcada no Caminho Francês, que está em vermelho.


- Não sabia que você era tão religioso!

De fato tenho faltado às missas de domingo, mas o Caminho de Santiago tornou-se mais que uma peregrinação religiosa. Tornou-se também um itinerário cultural (aliás, é assim que ele é também chamado hoje: "Itinerário Cultural Europeu"), onde se encontra natureza exuberante e é possível conhecer gente interessante de todas as idades e cantos desse planeta. Voltando ao dicionário, peregrinar também pode significar viajar por terras distantes ou, simplesmente, divagar.

- Interessante, mas você sabe como essa história começou e por que tanta gente resolve caminhar tanto? Acho isso tudo meio sem sentido.

Bem, a história é longa, mas vamos lá. Achei-a muito interessante e acredito que você também irá gostar. Tudo começou com São Tiago, apóstolo e um dos quatro primeiros discípulos de Jesus Cristo. Após a dispersão dos apóstolos pelo mundo, São Tiago foi pregar o evangelho na região do norte da Espanha, denominada Galícia. Quando voltou à Palestina, no ano de 44 d.C., foi preso e decapitado por uma autoridade romana. Dois dos seus discípulos, Teodoro e Atanásio, roubaram o corpo do apóstolo e seguiram embarcados com ele de volta para a Galícia, onde sepultaram secretamente os restos mortais num bosque de uma região chamada Iria Flávia.

Conta-se que por volta do ano 815, um ermitão chamado Pelágio observou durante algumas noites seguidas uma chuva de estrelas sobre um monte do bosque. O bispo de Iria Flávia, Teodomiro, mandou escavar o local e encontrou lá uma urna de mármore com os ossos do apóstolo e de seus discípulos. No campus stellae (campo de estrelas), umas das possibilidades de formação da palavra Compostela, foi erigida uma capela para proteger a tumba do apóstolo, que passou, desde então, a ser local de peregrinação cristã. Como na época a Península Ibérica estava sob uma ocupação árabe, o local tornou-se um símbolo de resistência cristã aos ataques dos mouros (árabes).

Na Idade Média, principalmente a partir do ano 1000, as peregrinações ao local popularizaram-se, tornando a cidade um dos grandes centros de peregrinação cristã. Próximo à região onde foi encontrada a tumba do apóstolo, construiu-se uma catedral em estilo gótico dedicada a São Tiago, aumentando ainda mais a peregrinação à cidade, que passou a se chamar Santiago de Compostela.

Visitando uma pequena igreja no local mais elevado do caminho (com cerca de 1.500 m de altitude), chamado  Cebreiro, descobri que em 1214 São Francisco de Assis também peregrinou a pé a Santiago. Em 2014 serão comemorados os oitocentos anos da peregrinação de São Francisco de Assis.


















A peregrinação religiosa a Santiago é cheia de simbolismos e lendas. Um dos símbolos mais fortes do caminho é uma vieira, isto é, uma concha, que confere ao caminho vários significados, numa ligação muito especial com a água.

Primeiro, por ter o corpo do apóstolo chegado pelo mar, desembarcando na costa da Galícia. Além disso, conta-se outra lenda, de que um peregrino seguia de cavalo quando repentinamente o animal disparou em direção ao mar. Após clamar pela vida a Santiago, uma forte onda o levou de volta à terra. De volta à consciência, percebeu que seu manto estava coberto de conchas, o que conferiu também ao objeto um novo significado: a proteção do peregrino durante o caminho. Dizem também que a vieira era a prova de que o peregrino completou a peregrinação a Santiago, que se estendia à costa da Espanha com o Oceano Atlântico, onde se podia apanhar facilmente uma concha no mar. Ah, com uma vieira é bem fácil e prático beber água nos riachos e fontes que há pelo caminho.

Até hoje os peregrinos usam uma concha para identificar-se como tal e para manter o simbolismo dessa história milenar. Eu não fiquei de fora, tratei de ter comigo uma viera protetora:


Por falar em proteção do peregrino, descobri algo muitíssimo interessante relacionado à minha profissão. Imagine você como deveria ser perigoso cruzar a Europa em plena Idade Média. Não havia ainda Estado da forma como hoje o compreendemos. Consequentemente, não havia polícia, estrutura, nem mesmo garantia de segurança durante a realização do caminho, que devia ser cheio de assaltantes, bruxas, malfeitores, criminosos e outros perigos. Pois foi para promover relativa segurança a quem desejasse peregrinar a Santiago que surgiram as primeiras ordens militares destinadas a proteger os peregrinos. Datam dessa época os cavaleiros templários, exércitos de monges guerreiros que protegiam lugares e caminhos santos. Na Espanha, surgiu a Ordem de Santiago da Espada, cujo símbolo, uma espada em forma crucífera, estampa a minha vieira, na foto acima. Tratava-se de uma ordem militar e religiosa criada em 1070, tendo como principal função proteger a peregrinação a Santiago de Compostela. Essas ordens militares, assim como diversas milícias populares com equivalente função, vão dar origem, na Espanha, aos primeiros corpos profissionais de polícia, que posteriormente serão oficializados e coordenados, no século XV, pelos Reis Católicos Isabel, de Castela, e Fernando, de Aragão. Assim, surgiu o que na Espanha ficou conhecida como Santa Hermandad (Santa Fraternidade), precursora da moderna polícia, que só surgira, como a entendemos hoje, no século XIX. Pelo caminho há monumentos e estátuas para homenagear esses pioneiros guerreiros:




As pessoas sentem a necessidade de participar e agradecer por tudo que o caminho oferece. Nem que seja a colocação de uma simples pedrinha. Não é a pedra, mas a intenção de colocá-la junto a outras, que  não saltaram do chão, mas foram colocadas ali por mãos humanas.

Bem, essa é a história que se conta sobre a origem do Caminho de Santiago. Mas descobri também que bem antes de descobrirem a tumba do apóstolo, já havia uma rota de peregrinação que mais ou menos coincidia com o Caminho de Santiago. Esse antigo caminho de peregrinação, realizado pelos romanos e anteriormente pelos celtas (um povo indo-europeu primitivo), ia do extremo leste para o oeste da Espanha, em Finisterre. Simbolizava a viagem do sol de oriente para o ocidente, quando então ele desaparecia no oceano para surgir no dia seguinte. Desde uma época muito antes de Cristo, acreditava-se que o mundo era finito e que tudo se acabava na direção onde o sol "afogava-se" na imensidão do mar. E a rota que continua por Santiago e encontra o Oceano Atlântico era o último trecho conhecido até então, onde se dizia que a terra acabava. Esse ponto era conhecido como Finis Terrae, ou "fim da terra". Esse lugar é chamado até hoje de Finisterre ou Fisterra, no idioma galego.



Parece que lá, por ser o fim do caminho (e da Terra), há uma cerimônia de queima da roupa do peregrino que para lá se dirige, simbologia de uma vida nova que se incia após o término do percurso. 

- Hum, começo a ver algum sentido, mas isso deve ser muito cansativo, não é?

Sim, muito. Acredito que isso também sirva para diferenciar uma peregrinação de um simples passeio. Quando decidimos passear, buscamos apenas encontrar prazer e divertimento. Quando decidimos peregrinar, empenhamo-nos num processo que envolve corpo e alma, dor e prazer. E nisso, a metáfora entre o caminho e a vida é poderosa e surge cada vez mais forte para o peregrino, que aqui já não se identifica apenas com os propósitos religiosos.

Tem gente que acha que a vida é um passeio, buscando a todo custo apenas o prazer (e cada vez mais imediato) e afastando toda a dor ou sofrimento. Como peregrino, aprendi a caminhar com dores e não deixar, pois conta disso, de contemplar o que encontrei de belo pelo caminho e de me socializar com pessoas conhecidas e desconhecidas. Como ouvi muito pelo caminho, "sin dolor no hay gloria!", uma das várias expressões de motivação e perseverança entre os peregrinos.

Comovi-me com a solidariedade de estranhos, que ao perceber sintomas de cansaço em outros peregrinos, diziam amavelmente "ânimo" ou cumprimentavam-os com um singelo e significativo buen camino. Aprendi a compreender e ter compaixão da dor alheia, diferente da minha, mas igualmente humana e consequência do caminhar exaustivo de cada dia. Caminhar inevitavelmente traz dores. Aprendi a superá-las e regozijar-me com o caminho, sempre aberto a múltiplas formas de caminhada. Olha, disseram-me uma coisa que percebi bem quando cheguei a Santiago: na verdade não há o caminho, o caminho faz-se ao caminhar.

- Nossa, você está falando umas coisas... viu a luz ou algo parecido nesse caminho?

Não, não houve nenhuma revelação ou epifania. O céu não se abriu e nem encontrei uma linha direita para falar com Deus. Só caminhei mesmo. Um passo depois do outro. Com a força das minhas pernas e dos meus pés, com o peso da minha mochila, que percebi que pode ser bem mais leve do que o conteúdo que escolhi pôr lá dentro, e na companhia de dois amigos, que tornaram meu caminhar mais leve e divertido. Também vi e senti muitas coisas.

Vi paisagens, vilarejos,árvores, flores e riachos deslumbrantes. Conheci pessoas interessantes, que estavam ali com propósitos insondáveis, mas tornaram-se companheiras de uma caminhada comum. Ouvi cantos de pássaros com timbres muito diferentes daqueles que já ouvi pelas cidades ou de dentro de gailolas. Havia em seus pequeninos pulmões o vigor de uma liberdade que se traduzia em sons e notas inesquecíveis e constantes pelo caminho. Surgiram também dores em mim que passaram a ser sentidas com tolerância e compreendidas como decorrentes do caminhar limitado pela velocidade e capacidade de meu corpo. Passei a ter orgulho de minhas dores. Eram minhas. Cabia a mim suportá-las e ir em frente. Quando olhava as pessoas caminhando ao meu lado, pude sentir compaixão pela dor alheia, por senti-las também em mim, mesmo que em graus e sintomas diferenciados.

O mundo se tornou acelerado demais. E a natureza humana só nos deu pernas e pés para caminhar. O caminho talvez sirva para isso, para caminhar na velocidade humana, percebendo a vida na sua velocidade natural. Isso faz com que percebamos detalhes e sentimentos que a montanha russa do nosso dia-a-dia-pós-moderno nos impede de ver. Ao caminhar, dia após dia, fui sentindo que aquilo de que precisamos nessa vida os romanos já sabiam há tempos: mens sana in corpore sano.

Somos a única criatura deste mundo que tem o privilégio de ser um corpo em que coexistem natureza e espírito. Possuímos em nós a plenitude da natureza - que nos faz próximos dos bichos, da terra e de tudo que o Criador pôs neste mundo. Ao mesmo tempo, temos um espírito que nos permite transcender a matéria e criar novos mundos, como o mundo da cultura e o mundo do amor.
Pela cultura, extrapolamo-nos pela língua, pela poesia, música, literatura, religião, arte e tudo mais que o espírito humano é capaz de criar por não caber em si. Por meio da cultura deixamos de ser animais errantes, que apenas se alimentam para sobreviver e praticam sexo para se reproduzir. Sentimos os sabores e sensações dos alimentos, que não servem apenas para nos alimentar, mas também permite o prazer e a socialização. Num mundo cultural, humano, o sexo não se limita à reprodução. Bem, melhor eu para por aqui.

Pelo amor, conectamo-nos aos outros seres, sentindo por eles algo que só existe quando saímos de nós e vamos ao encontro deles. Podemos amar muitas coisas, desde animais até coisas materiais. Mas somente quando este amor é dirigido a outro ser humano, que por sua vez tem igualmente a capacidade de amar, é que se tem a verdadeira satisfação e contentamento que tanto se busca neste mundo. O amor nasce dentro de nós, mas somente quando ele extravasa, buscando encontrar outros seres humanos, é que incendeia, ilumina e aquece nossas vidas.

O caminho tem surpresas incrivelmente simples. Uma das mais significativas eu encontrei na lata de lixo:


A natureza me encantava a cada curva. Em certos momentos, ficava inebriado com tanta beleza. O vento fresco que batia no meu rosto pelas manhãs. A sombra das árvores que acolhiam e protegiam do sol excessivo. O som de rios e de pássaros. A cor de folhas e flores. A graça divina estava na natureza. Eu queria comungar. Comer a hóstia feita de folha verde. Envolver-me e imanar-me com aquela beleza toda.

A vontade era de sentir o cheiro da água. Saborear as cores das flores. Ouvir o som da terra. Acariciar o som dos pássaros e do vento. Deitar no chão de terra negra e úmida. Sujar-me com a lama limpa de caminhos molhados pela chuva e pelo orvalho. Eu queria fazer parte daquilo tudo. Tornar-me natureza e sentir a sua força, voltar à terra, ao pó. Extravasei-me em lágrimas por não conseguir.

Mas o caminho seguia e para minha surpresa diária tudo se renovava. Novas paisagens, novas flores, novas pessoas, tudo era encantador demais para eu ficar parado e querer possuir tudo aquilo. Resolvi então apenas sentir, respeitar, compreender e deixar tudo para trás sem querer nada possuir. Afinal, outros tantos a cada dia fariam o mesmo caminho. Percorreriam os mesmos bosques e lugares paradisíacos e bucólicos. O caminho é de todos, não tenho o direito de possuí-lo. Se bem que muitos não viram/sentiram o que eu vi/senti e certamente não vi/senti o que muitos viram/sentiram. O caminho é para todos, mas não é o mesmo para todos.

Quanto ao espírito, senti-o manifestar-se com a reflexão de pensamentos que me inquietam na vida e com a necessidade de me relacionar com outras pessoas. Com meus amigos, falando bobagens e inventando "teorias da vida". Inventamos uma teoria matemática da vida. Entre devaneios e passos doloridos, inventamos a equação da vida. Segundo essa novíssima teoria, quando nascemos, a equação se inicia com uma chave "{" , como na teoria dos conjuntos. Daí, podemos abrir, dentro ainda dessa chave, colchetes "[", em novas e desafiantes etapas da vida. No nosso caso, um grande colchete foi aberto quando decidimos vir para Coimbra fazer o doutorado. Quando iniciamos nossa caminhada rumo a Santiago, foi aberto um parênteses  "(" dentro desse colchete, que se fechou nove dias depois. Uma etapa se cumpriu. Na nossa teoria, o importante era cumprir etapas, fechar colchetes e parênteses de forma dedicada e perseverante.  Com o colchete do doutoramento aberto, decidimos que ainda queremos abrir ainda muitos outros parênteses, planejando e realizando projetos diversos. Fechado o colchete do doutorado, daqui a quatro anos, quereremos de novo abrir outros colchetes... e assim vai, até que a chave final se feche, no crepúsculo de nossas vidas, que será cheia de felizes conjuntos de colchetes e parênteses bem fechadinhos. Nessa altura o sol já estava forte nas nossas cabeças e decidimos interromper nosso delírio. A teoria fica por ser aperfeiçoada.

Sentia também vontade de saber da vida das pessoas desconhecidas que via pelo caminho e hospedavam-se nos mesmos albergues. Inquietava-me saber o motivo que as levaram ao caminho. Sempre que o idioma permitia, arriscava-me a iniciar uma conversa. Mas percebi que isso não era revelante para aquele momento. O importante mesmo era caminhar, era chegar a Santiago.

Com meus passos cansados, percebi talvez o óbvio, que somos natureza e espírito. Sem entrar em nenhum templo, constatei que somos únicos nesta Terra, os filhos de um Deus Pai, que nos criou da natureza; Deus Filho, que nos ensinou a amar o próximo, como a nós mesmos; e Deus Espírito Santo, que nos deu o fogo do amor, que para aquecer e iluminar nossas almas cansadas deve ser sempre transmitido a outro ser humano.

- Nossa, você voltou diferente mesmo desse passeio, ops, desculpa, dessa peregrinação. A conversa está boa, mas deixa eu ir, que você está com a vida ganha. Tenho um monte de coisas para fazer e se eu não correr não dou conta. Um abraço e bom dia.

Foi-se o meu amigo. Ele ainda tenta caminhar mais rápido do que permitem as suas próprias pernas. Eu tento desacelerar. Correr demais faz adoecer tanto o corpo como o espírito. As juntas, tendões e músculos não aguentam um ritmo tão veloz. O espírito, idem.

Descobri, com o caminho e com o poeta romano Juvenal, que desejo mesmo neste mundo é uma "mente sã num corpo são".

          Deve-se pedir em oração que a mente seja sã num corpo são.
          Peça uma alma corajosa que careça do temor da morte,
          que ponha a longevidade em último lugar entre as bênçãos da natureza,
          que suporte qualquer tipo de labores,
          desconheça a ira, nada cobice e creia mais
          nos labores selvagens de Hércules
          do que nas satisfações, nos banquetes e camas de plumas de um rei oriental.
          Revelarei aquilo que podes dar a ti próprio;
          Certamente, o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude.
                                                                           Sátira X - Poeta romano Juvenal

O que é urgente nessa vida é cuidar do corpo e do espírito. E tentar consertá-los de excessos, derrapagens e erros de direção. Qual o caminho para isso? Não vejo outro: humanamente caminhar a vida e viver o caminho.
















         








































Aqueles dias foram tão felizes e intensos que cortava o meu coração pensar que Santiago seria o fim do caminho. O que haveria depois? Alegrei-me novamente quando, atentamente, vislumbrei a resposta. Não a achei na natureza, mas no espírito humano que a gravou na pedra.