domingo, 6 de maio de 2012

(Nossa?) Língua Portuguesa

FILIPA: Olá, Nuno, peço desculpas pelo atraso, mas a carrinha quebrou. Acho que foi o travão.
NUNO: Que nada, se calhar ainda nem começou a aula. Trouxeste a sebenta e o agrafador?
FILIPA: Sim, está tudo aqui. Aliás, muito gira a sua sebenta! Tu viste aquela banda desenhada que te falei?
NUNO: Qual?

FILIPA: Aquela, que eu disse-te que era fixe.
NUNO: Sobre os miúdos?

FILIPA: Isso, essa mesma. Desta vez meteram-se em confusão em outro sítio, num comboio.
NUNO: O que houve?

FILIPA: Ouve lá, ó pá. Tudo começou quando um puto, depois de comer um prego com piri-piri, precisou ir à casa de banho. Entrou no rabo da bicha e, passados cinco minutos, entrou tão rápido que avariou o autoclismo. Foi água pra todo lado.
NUNO: Peço desculpas, mas isso é uma bacorada.

FILIPA: Contando pode não ser porreiro, mas é porque não viste como retrataram o facto.
NUNO: Como?

FILIPA: Ele estava todo molhado, com a ganga no chão e sentado na retrete.
NUNO: Continuo achando isso nada giro.

FILIPA: Tu és mesmo um totó.
NUNO: Ah, vai comer palha!!!

Se você é um falante da Língua Portuguesa e teve alguma dificuldade em entender o fictício diálogo acima, provavelmente é porque sua nacionalidade difere do adjetivo que batiza o idioma. Trata-se de um diálogo perfeitamente compreensível para um português, mas, à primeira vista, muito estranho para um brasileiro.

Quando vim para cá, imaginei que seria acolhido de braços abertos pela minha "língua mãe gentil". Iludi-me com a frase de Pessoa, "Minha pátria é a Língua Portuguesa", achando que teria aqui dupla nacionalidade linguística. Afinal, desde quando, em tenra idade, por meio dela comecei a descobrir o mundo, acostumei-me aos seus sons, carinhos e gracejos. Por motivos óbvios (e de sobrevivência) tudo começou com vocábulos não muito corretos: "papa", "mamã", "dá", e alguns outros sons guturais. Se eu forçar bem a memória, acho que isso foi por conta de alguns adultos que a mim se dirigiam com palavras estranhas, distorcidas e proferidas de um jeito muito estranho: "que-cute-cute-o-bebê-da-mamã", "ti-nenê-qué-papá?"... Depois fui vendo que se tratava apenas, por parte deles, de excesso de carinho e afeto. As coisas que por meio dela iria ainda aprender estavam mais à frente, não necessariamente isentas de carinho e afeto, mas com beleza e riqueza que até hoje me surpreendo.

À medida que os anos iam em mim atuando, passei a descobrir sua potencialidade semântica, sintática, gramatical e poética. O desabrochar de metáforas, metonímias, aliterações e outras figuras de linguagem enchiam-me de encanto e deslumbramento. Assim que fui sendo apresentado a seus filhos mais ilustres: Machado de Assis, Olavo Bilac, Graciliano Ramos, José de Alencar, Gonçalves Dias, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Nélida Piñon... (uma grande família); senti-me orgulhoso de tê-los como irmãos. E a descoberta de novos meio-irmãos lusitanos deixou-me tão extasiado quanto: Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Florbela Espanca, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, José Saramago...

E ela não me cansa de fascinar. Descubro sua beleza renovada e expandida em cada novo livro, artigo, música, exposição, poema, e tudo mais que com ela se pode criar e descrever. Afinal, tudo que há nesse mundo só assim o é, para nós falantes da Língua Portuguesa, porque conseguimos expressá-lo (e o entender) por palavras que, articuladas, transformam substantivos, adjetivos, advérbios, frases e orações em ideias, pensamentos, sentimentos, poesias, textos de blog...

Ela é tão gentil, e tão generosa, que por meio dela sou capaz de conhecer suas amigas e ter assim outras mães. Melhor, madrastas, como estão sendo a Língua Inglesa (descolada e popular) e, mais recentemente, a Língua Alemã (essa tão dura e severa, mas muito culta!). Com elas posso até sentir certo acolhimento e conseguir conversar com seus filhos legítimos, mas carinho e afeto de verdade só com a língua-mamãe. Com ela sou pleno, com as madrastas, limitado!

Olha, eu gosto tanto dela e me sinto tão orgulhoso de tê-la como minha língua-mãe, que às vezes fico imaginando ter nascido de outra, só para saber como é o som de sua voz pronunciando palavras cujo sentido desconheço. Como é para mim a voz de suas amigas lá da Rússia e da República Tcheca.

Mas não seria agora, portanto, já prateando a fronte, que ela iria novamente ser uma estranha para mim. Assim que cheguei aqui em Portugal (e isso está registrado nos anais deste blog), vi-me em situações que não a compreendia. Quer seja pelo uso e sentido diferenciado de algumas palavras (colocadas propositalmente no diálogo que abre este post), quer seja por um sotaque absolutamente diferente (confesso que até certo ponto charmoso e cerimonioso), senti-me uma cria rejeitada. Um estranho em outro país tudo bem, mas não poderia ser um estranho da minha mãezinha que tudo me ensinou.

Depois vi que se tratava apenas de coisa minha. Um certo complexo de Édipo. Quem eram aquelas pessoas estranhas que agora queriam tomá-la de mim? Na verdade ela continuava lá, paciente, apenas esperando que eu superasse o complexo. Depois de alguns meses de análise consegui aceitar a partilha e hoje convivo harmoniosamente com meus meio-irmãos lusitanos.

Mas antes de nos parir, como será que foi a vida da nossa querida língua-mãe-portuguesa? Sobre sua infância e juventude, pouco se tem registro. Sabe-se que veio de uma família enorme (parece que de sobrenome "latim", mas que já morreu faz tempo). Só após seu casamento é que ela se mostrou em seu vigor e maturidade. Casou-se com Luis Vaz de Camões e com ele teve um filho. Deram-lhe o nome de "Os Lusíadas". A partir daí a prole não parou de crescer e se espalhou mundo afora.

Ora, pensando bem, se há filhos bastardos nessa história, somos nós brasileiros. Os portugueses foram os primeiros paridos. Não foi aqui em Portugal que ela nasceu? É só olhar o seu sobrenome, registrado em cartório e tudo. Depois é que ela foi dar uma volta (ao mundo), respirar novos ares, e se enamorou de terras distantes, deixando nelas filhos que se emanciparam, mas nunca deixaram de respeitá-la e lhe pedir a benção. No Brasil, pelo menos, ela ficou uma mãe morena, muito em razão do sol dos trópicos e da mistura de raças dos filhos que ela acolheu. Depois de parir o portugueses, acho que ela é para nós como uma avó, doce e serena!

Mas esperá lá, ó pá! Mãe, avó, madrasta... Como é que fica o título deste texto? Podemos então todos nós chamá-la de nossa Língua Portuguesa? Claro que sim, então não dizem que em coração de mãe sempre cabe mais um...

Mesmo com suas variações, que servem apenas para lhe dar ainda mais charme e riqueza, ela é NOSSA: de 11 milhões de portugueses, de 190 milhões de brasileiros, de 17 milhões de angolanos, de 21 milhões de moçambicanos, de 1,6 milhão de guineenses, 500 mil cabo-verdianos, 160 mil são-tomenses, 1,1 milhão de timorenses e de 550 mil macaenses. Somos todos irmãos por parte de mãe!!!


Nossa e de quem mais quiser...


Ela sempre será uma ótima madrasta: generosa, culta, bela e amável. Mas chamar-lhe de mãe, de mãezinha, só mesmo para aqueles 240 milhões de afortunados!


Viva a NOSSA Língua-mãe Portuguesa!!!

"Não há uma Língua Portuguesa. Há línguas em português"
José Saramago


p.s.1 Hoje, dia 06 de maio, é "Dia da Mãe" em Portugal (sim, aqui é no singular mesmo). Fica aqui a homenagem a todas elas: biológicas, de aluguel, madrastas, avós, linguísticas, de consideração...

p.s.2 Se você é como eu, uma apaixonado pela Língua Portuguesa, o vídeo abaixo pode te interessar (ou emocionar).


p.s.3 No caso da curiosidade ainda persistir, segue o diálogo inicial, agora numa "tradução" livre:

FILIPA: Olá, Nuno, desculpa pelo atraso, mas a van quebrou. Acho que foi o freio.
NUNO: Que nada, talvez ainda nem tenha começado a aula. Trouxe o bloco de rascunho e o grampeador?
FILIPA: Sim, está tudo aqui. Aliás, muito legal o seu bloco de rascunho! Você viu aquela estória em quadrinhos que te falei?
NUNO: Qual?

FILIPA: Aquela, que eu te disse que era bacana.
NUNO: Sobre os meninos?

FILIPA: Isso, essa mesma. Desta vez se meteram em confusão em outro lugar, num trem.
NUNO: O que houve?

FILIPA: Ouve só. Tudo começou quando um garoto, depois de comer um sanduíche de  carne de boi com pimenta, precisou ir ao banheiro. Entrou no fim da fila e, passados cinco minutos, entrou tão rápido que quebrou a descarga. Foi água pra todo lado.
NUNO: Desculpa, mas isso é uma asneira.

FILIPA: Contando pode não ser bom, mas é porque não viu como retrataram o lance.
NUNO: Como?

FILIPA: Ele estava todo molhado, com a calça jeans no chão e sentado na privada.
NUNO: Continuo achando isso nada interessante.

FILIPA: Você é mesmo um palerma.
NUNO: Ah, vai catar coquinho!!!





13 comentários:

  1. Parabens. Outro dia voce disse que não sabe se volta doutor porem sabe que voltará um bom quituteiro, e eu acrescento: voltaras tambem um otimo escritor. A cada cronica se desenvolve mais essa caracteristica peculiar de escrever sobre temas eruditos em palavras simples de facil compreensão a qualquer leigo. Somente me ressinto desse texto não ter sido escrito para o nosso jornal pois teria toda a similaridade com o titulo "A Palavra". Beijão. Celia Abreu

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Célia
      Você é sempre uma das primeiras a me dar a felicidade de ler um comentário por aqui.
      Sim, estou em falta com A Palavra. Mas aguarde, vou preparar o texto.
      Beijão.

      Excluir
  2. Olá, Silvagner!
    Parabéns pelo belo exercício de lusofonia! A nossa língua é mesmo fantástica, não é?
    Eu compreendo-te perfeitamente, mergulhado de súbito nessas variações linguísticas, e sem legendas no rodapé. Eu passei por isso, embora já tivesse outra familiaridade com as expressões portuguesas, uma vez que o meu 2º casamento foi com um português, que já estava radicado no Brasil há uns anos. Mas, confesso que tive igual necessidade de adaptação linguística quando me mudei do ES para São Paulo, e de lá diretamente para Pernambuco. E naquele intervalo, entre Dez/1979 e Jun/1987, foram muitas as estadias prolongadas também no Pará, Piauí e Amazonas, sempre a acompanhar o marido para os trabalhos nas fábricas de cimento Nassau, do Grupo João Santos. Confesso que nós brasileiros falamos línguas diversas, dependendo da região do Brasil em que nos encontramos.
    Chegando a Portugal, em junho de 1987, eu percebi que portugueses entendem melhor os brasileiros do que o inverso. Nisso a TV teve uma enorme influência. E não é só com relação ao português falado no Brasil, mas também com relação às línguas estrangeiras. As emissões televisivas “sem” dublagem (ou dobragem) propiciam uma maior familiaridade com os mais diversos idiomas, facilitando a sua aprendizagem. É pena que a TV brasileira seja tão paternalista e centralizadora! Infelizmente lá, só a elite da TV paga tem acesso aos canais sem dublagem. É lamentável! Tantos jovens de parcos recursos e com tanto potencial e vontade de aprender! Enfim… esperemos que isso um dia mude, não é?!?
    Pois bem, mas a verdade é que, desde 1500 que nos entendemos bem. As variações são próprias das línguas vivas. Também o inglês tem imensas variações, e nem por isso os britânicos, norte americanos, australianos, sul-africanos, escoceses, irlandeses, etc… deixam de entender-se bem… e não precisam de um ridículo “acordo ortográfico” como o nosso. Até porque as nossas maiores diferenças não se prendem à ortografia, mas sim às variadas expressões idiomáticas e às construções das frases, coisas a que o "acordo" é alheio. Esse "acordo ortográfico" é a galinha dos ovos de ouro da indústria livreira, principalmente da brasileira... em mais nada eu lhe vejo utilidade, nem vantagem.
    Bem, mas eu adorei o teu texto! Estás de parabéns! Estarei atenta ao próximo!
    Uma abraço conterrâneo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Prezada Rose,
      Nossa Língua é tão incrível que, mesmo sem nos conhecermos pessoalmente, torna este diálogo possível.
      Muito agradecido por suas contribuições que fazem desse espaço justamente o que eu desejava para ele: um diálogo privilegiado com (novos)amigos e leitores.
      Um grande abraço.

      Excluir
  3. Gostei muito! Penso que, como nós, os portugueses tb devem estranhar as nossas expressões! Dizer que algo é legal...ora pois, como assim? Decorrerá da lei? Enfim, mais um texto capaz de "deliciar" o leitor! Muito legal! ;)
    Bárbara

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ei Bárbara,
      Que bom vê-la por aqui. Estava sumida.
      Como dizem por aqui: Pois...
      ...afinal, nem tudo que é legal (que decorre da lei) é giro!
      Beijinhos.

      Excluir
  4. Muito legal o texto! Parece que os festejos da terrinha estão te inspirando. Vou mostrar p Ana, ela vai adorar o texto em "português de Portugal"rsrsrsrsr. Bj. Fica com Deus.Silmara

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, maninha, Coimbra está mais colorida e alegre. Sobre isso, aguarde o próximo post.
      Beijos.

      Excluir
  5. Adorei, Silvagner! Só faltou o miúdo estar reunido com a malta, ser um parvo e estar mascando uma pastilha elástica. kkkkkk

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, Carol, tive que me conter nas palavras e expressões. Senão o diálogo iria ficar maior que o post.
      Mas estão aí mais três "novas" palavras. Valeu pela contribuição ao nosso "vocabulário luso-brasileiro". rsrs
      Abração.

      p.s. Ah, já ia esquecendo a "tradução":

      -malta: grupo de pessoas com interesses e atividades afins (pessoal)

      -parvo: tolo, pateta

      -pastilha elástica: (essa é fácil) pequena guloseima mastigável, aromatizada,de consistência pegajosa e elástica. E o dicionário deixa claro que ela não é feita para engolir! :)

      Excluir
  6. O advogado, assim como o poeta, é um malabarista da palavra!

    Ora, você é advogado, e também poeta.

    As palavras são brinquedos nas suas mãos.

    p.s.: já havia lido esse semana passada, mas passei batido sem comentar. prometo não fazer mais isso. rs

    ResponderExcluir
  7. Titio eu amei o seu testo principalmente a fala de nuno:ah,vai comer palha.Que deus te abençoe e te guie te guarde etc...eu quero muito te ver e eu vi vc vc ta de barba igual a do vovo vanil.Eu te amo tchau!



    com amor:Ana Luiza Azevedo Silveira

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ana,
      O titio ficou muito muito feliz com a sua mensagem.
      A barba eu te falo depois porque eu deixei crescer.
      Beijão.

      Excluir