"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."
Cecília Meireles
Hoje faz um dia chuvoso e é feriado nacional em Portugal.
Esqueça o dado meteorológico (desabafo de quem vive há mais de uma semana debaixo chuva em Coimbra) e fiquemos com o feriado. Diante da importância que essa data tem para os portugueses, sinto-me um pouco envergonhado em desconhecê-la até então. Antes de aqui estar, meus conhecimentos sobre a história de Portugal eram limitados, grosso modo, ao período que vai da nossa "descoberta" enquanto país até 1822, quando nos tornamos então "independentes". Sobre acontecimentos recentes de Portugal, pelo menos os ocorridos no século XX, confesso a minha relativa ignorância. Mas sorte nossa que sempre há tempo para aprender, falta-nos às vezes disposição e oportunidade. No meu caso, essa última engendrou aquela e eu agora descubro que essa data tem para os portugueses um profundo significado de LIBERDADE!
Sim, os proféticos ideais revolucionários franceses de igualdade, liberdade e fraternidade, apesar de esmaecidos, estão sempre a orientar e motivar a humanidade a evoluir, inspirando revoluções mundo afora desde 1789. Inspirou também a arte, que especificamente sobre a liberdade, produziu um dos quadros mais belos e poderosos que já vi. Pela pertinência, merece a reprodução, que aqui empobrece o impacto de vê-lo nas dimensões originais:
"A liberdade guiando o povo" - Eugène Delacroix (1830)
Dimensões: 260 cm x 325 cm Museu do Louvre
Pena que nem sempre se trata de uma evolução linear e nunca estamos imunes a retrocessos, a fracassos e à ação de aproveitadores de toda ordem. Quando olhamos para traz, tudo parece que caminha de fato "com passos de formiga e sem vontade". A não ser em épocas revolucionárias, nas quais aqueles ideais tomam conta e contagiam o "espírito do povo" de tal forma que não há fuzis nem baionetas que impeçam o seus passos de elefante. Depois, com os "mecanismos de dominação" atuando novamente, com a ação delével do tempo, com a vida cotidiana que todos tem de levar (sem a paixão inflamada própria da revolução); voltamos a ser formigas e tudo tende a se estabilizar, a se acomodar nos dias, meses e anos. Talvez por isso é que a celebração de datas como o "25 de abril" seja tão relevante e merecem a dimensão de feriado nacional. Para aquecer a memória e o espírito morno com os quais vivemos egoisticamente nossas vidas. O direito à memória: nada mais atual e caro ao Direito.
Mas se você também não sabe o que ocorreu aqui em Portugal no dia "25 de abril" de um ano qualquer, o que se segue talvez possa te interessar. Se já sabe, convido-o a ler minhas reflexões e digressões sobre essa data. Vá lá, mal não podem fazer!
Pois bem, a intenção não é dar aula de história, mas para entender o que de fato significa o "25 de abril" para Portugal é preciso saber que em 25 de abril de 1974 houve aqui uma revolução política, que depôs o regime ditatorial de Antônio de Oliveira Salazar, instalado em 1933. Como todos sabem, para ficar num eufemismo, não há rima (política) entre ditadura e democracia. Apesar de alguns políticos populistas tentarem "harmonizá-las", são palavras que denotam regimes políticos incomunicáveis, pois o poder político centralizado (em uma pessoa ou num grupo de pessoas) e imune à opinião pública nunca pode ter a chancela de democrático.
E, de 1933 a 1974, Portugal foi uma ditadura. Não de característica militar, como quase que instintivamente nós brasileiros associamos como complemento dessa palavra. Salazar não era militar, era um catedrático, um brilhante professor universitário. Doutorou-se e lecionou na Universidade de Coimbra. Desde que aqui cheguei ouço falar, quase que como uma lenda, que ele está no seleto grupo de doutores que se formou com a nota máxima. Acreditem, esse é um feito que, em mais de 700 anos da universidade, repetiu-se muito poucas vezes. Ele foi Ministro das Finanças na época da primeira república em Portugal e conseguiu equilibrar as finanças desde há muito um caos. Por conta disso, foi considerado um tipo de "salvador da pátria" (humm, já viu onde isso vai dar...) e em 1933 foi empossado como Presidente do Conselho de Ministros (algo como um Primeiro Ministro), cargo lhe dava amplos poderes ditatoriais, exercidos até 1968, dois anos antes de sua morte.
Mas como ocorre em todas as ditaduras, militares ou não, houve severas restrições às liberdades (física, política, de expressão...) das pessoas. Tudo era vigiado (patrulhado) e caso algo fosse "contrário ao governo" era censurado ou, uma vez delatado, "desapareciam" com ele. Nada escapava: músicas, filmes, livros, etc. Nisso, militar ou catedrática, toda ditadura é igual. Influenciada (e inspirada) pelos regimes totalitários de sua época (Alemanha, Itália, Espanha), a ditadura de Salazar era orientada por princípios conservadores e autoritários: "Deus, Pátria e Família".
Como igualmente ocorre com todas as ditaduras, um dia elas acabam. E a começada por Salazar acabou no dia 25 de abril de 1974. Por ironia do destino, uma revolução feita por militares, mobilizada pelo chamado "Movimento das Forças Armadas", composto por oficiais intermediários (capitães). Um movimento que começou nas Forças Armadas como reivindicação corporativista (muitos militares haviam lutado em guerras nas colônias portuguesas na África e reivindicavam mais prestígio) e recebeu grande apoio da população, notadamente dos jovens estudantes, à época recrutados para lutarem nas guerras coloniais africanas.
No quadro mencionado acima, "A liberdade guiando o povo", não é despropositado que a figura feminina que representa esse valor esteja empunhado uma arma. Não há revolução sem força, mesmo que dela não se faça o uso, de fato, mas deve haver a força, mesmo que em potencial. E na revolução de "25 de abril", o descontentamento da população encontrou, nas Forças Armadas, as armas que lhes eram necessárias para planejar e executar a revolução e democratizar o país. Militares e democracia? Sim, apesar de inusitado, isso ocorreu e nos mostra que, para se fazer uma revolução, busca-se a força onde quer que ela esteja.
Sobre a execução da revolução, muito interessantes (quase cinematográficos) foram os preparativos na noite do dia 24 de abril. Entre os militares, ficou acordado que haveria duas senhas para que a revolução fosse iniciada e as tropas ocupassem de fato os principais pontos estratégicos do governo.
Primeiro, às 22:55h do dia 24 de abril, foi transmitida pelo rádio a canção "E depois do adeus" (famosa por ter vencido o célebre Festival RTP da Canção). Era a senha para as tropas se prepararem e ficarem a postos. À meia-noite e vinte do dia 25 de abril foi transmitida pelo rádio uma segunda canção, chamada "Grândola, Vila Morena" (uma canção sobre o sentimento de comunidade e de fraternidade de uma vila da região do Alentejo, que foi banida e censurada (a canção) pelo governo de Salazar como sendo de orientação "comunista"). Essa era a segunda e derradeira senha para as tropas saírem dos quarteis e iniciarem as operações militares da revolução. Ambas as canções, em especial a última, transformaram-se em hinos à liberdade e à memória da revolução.
O que ocorreu após a transmissão da segunda canção está registrado em emblemáticas fotos e vídeos da população tomando as ruas de Lisboa e, junto com as tropas (muitas vezes em cima dos tanques e "em comunhão" com os militares, em cenas incomuns em revoluções políticas), ocupando todas as sedes dos poderes do Governo. Depôs-se, sem grandes embates armados ("apenas" 04 pessoas morreram, em virtude de tiros disparados pela polícia política do governo deposto) ou qualquer resistência, um governo ditatorial de 41 anos.
Há um "nome fantasia" para a revolução de 1974: denominaram-na "Revolução dos Cravos". Segundo se conta, uma florista começou a distribuir cravos vermelhos à população que saía às ruas no dia 25 de abril. Deram-nos aos militares, que por sua vez os colocaram nos canos dos fuzis, numa imagem poética que batizou a revolução.
Em 1974, um país a um oceano de distância de Portugal ainda vivia sua ditadura, essa sim, militar. E quem mais soube falar (não falando) sobre as dificuldades de se viver sob a ditadura militar brasileira foi um cantor e poeta. Tentando driblar a censura com suas músicas de letras engenhosas, Chico Buarque foi o gênio que, em uns poucos versos de uma música chamada "Tanto Mar", conseguiu dizer aquilo que era importante e que certamente não poderia ser dito "com todas as letras" por quem estivesse no Brasil em 25 de abril de 1974.
Conhecendo agora essa "pequena" história sobre revolução, liberdade e cravos, tudo passa a fazer sentido na "ingênua" canção de Chico Buarque. As palavras realmente encontram o seu significado no contexto em que são empregadas. E num sistema autoritário/ditatorial, o contexto não é algo partilhado, não é um "texto com", é um "texto sem", sem participação, sem diversidade, sem liberdade.
E no "texto" que se lia no Brasil em 1975, descobriram algo de "diferente" na letra de Tanto Mar e ela foi vetada pela censura. Vai saber por quê! O que pode haver de errado com uma canção que fala de uma festa, de mar, de cravos e alecrins?
Acho mesmo é que delataram o Chico...
Tanto mar Chico Buarque | ||||
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p.s. Se você chegou até aqui, como recompensa, indico os dois vídeos abaixo. O primeiro com um Chico moço, falando e cantando o "25 de abril" português. O segundo é um trecho do belíssimo filme "Fados", de Carlos Saura, também com Chico, agora maduro. Esse vídeo começa ao som de "Grândola, Vila Morena", a canção/senha derradeira para a revolução.
Em ambos os vídeos há cenas da poética e celebrada "Revolução dos Cravos". São emocionantes!!!
Tanto Mar - Chico Buarque
Fado Tropical - Chico Buarque
Muito bom, Silvagner! Apesar de brasileira e tb de não ter vivido em Portugal antes de 74, nesses quase 26 anos por terras lusitanas eu aprendi a viver com emoção "o 25 de Abril". Fizeste um excelente historial desse emblemático "Portal para a Liberdade" que foi a Revolução dos Cravos. Espero e desejo que muitos leiam este teu magnífico texto, tanto aqui em Portugal como no Brasil, Angola, Moçambique e muito mais. Quem ainda não tivesse conhecimento, passaria a tê-lo, e quem já o tivesse, reforçaria a posição da "Liberdade" na sua escala de valores! A tua abordagem foi muito feliz e muito pertinente. Parabéns!
ResponderExcluirPS: só tenho uma pequena observação a fazer, acerca da linha decorientação do Estado Novo... era "Deus, Pátria e Família".
Obrigado Rose Santos,
ExcluirMuitíssimo grato pelas palavras e pela contribuição ao texto, que já se encontra alterado.
Confesso que fiquei ainda mais impressionado com este, do que com os anteriores.
ResponderExcluirNão que os outros não tenham sido tão bem escritos quanto. O diferencial (pelo menos pra mim)foi o aprendizado.
O significado do dia 25/04 em Portugal até então para mim era desconhecido. E o mais impressionante é que para alguém que também descobriu a pouco, a junção de tantas informações, e ainda mais, a mesclagem/comparação com a nossa ditadura, nossa história...
Sem muito me prolongar, quero te agradecer por cada linha escrita. Pois são informações que farei questão de que não saiam da minha mente. E não seria possível, nem se assim quisesse.
Os dados históricos são expostos junto com uma forma incrível e envolvente de se ler.
As gravuras, vídeos e a música de Chico Buarque...
Sem palavras.
Parabéns e continue nos dando este prazer.
Bruce,
ExcluirFico comovido com seu comentário, que é sempre muito motivador. Espero continuar correspondendo às expectativas, com informações emoções e sentimentos vividos aqui, a um oceano (como a um click) de distância.
Didatico, inspirador e emocionante!!!Bem, eu serei menos modesto q meu amigo Bruce pois historia , curiosidades e datas... muitas datas sempre exerceram grande magnetismo sobre mim!!!!Cabe registrar a aula de historia, a busca pelos fatos, o texto enxuto e esclarecedor. Uma verdadeira aula aos novatos e iniciantes na Historia das grandes revolucoes!!!!! Esse e o meu amigo que nunca me deccepciona!!!! Bravissimo!!!! Nelsinho
ResponderExcluirAi Nelsinho, sim para mim não é Nelson, é Nelsinho mesmo.
ExcluirOs anos me deram essa intimidade.
Não há muitas palavras com as quais eu possa agradecer as suas. Fico com o que me resta: muito obrigado!
Um forte abraço!
Olá.... é uma vivência enorme poder conhecer in loco a cultura de Portugal.
ResponderExcluirMeu avô materno era de Vila Nova de Gaia, colado ao Porto e sempre nos interessamos muito pela história de sua terra.
A "Revolução dos Cravos" foi um marco, não só em Portugal, como em todos países que viviam sob o jugo da ditadura militar. Chico com essa música, cantava o que todos gostariam de dizer e não podiam. O filme do Carlos Saura é maravilhoso.
Os portugueses têm mesmo é que comemorar o 25 de abril. Só tenho uma pergunta: Como uma Revolução começa com ideiais de Esquerda e vai para o Centro? É a vida.... U,m grande abraço e escreva sempre... é muito bom poder ler você.
Rosa Maria Campos
Acho, Rosa Maria, que são os tais passos de formiga e sem vontade. E com formigas, tudo é mais fácil de se conduzir. Quer seja para a esquerda, para a direita, para o lado...E se elas não forem, pisam-nas!
ExcluirObrigado mais uma vez por sua participação. Um grande abraço.
Olha, difícil dizer o que de mais emocionante há nesse texto.
ResponderExcluirSou uma apaixonada por Revoluções! Confesso que, quando penso em regime ditatorial, me vem à mente a figura do militar. Fiquei surpresa ao saber que nesta, na verdade, os militares foram os que deram aparato ao povo! Faz a gente esquecer aquela imagem do militar que promoveu a ditadura aqui no Brasil e pensar um pouquinho no militarismo em seu sentido primeiro, real: a defesa do país.
Sou uma apaixonada também pelo Chico! A gente nunca cansa de descobrir as entrelinhas das suas músicas! Não sabia, até hoje, da Revolução dos Cravos, muito menos que a música do Chico fazia referência a ela.
Pouco comum, mas você não vai acreditar que eu AMO fado! rs Verdadeiro encanto pela história da Maria Severa. Sonho em conhecer a casa dela quando tiver oportunidade de visitar a terrinha :D Quando puder, faça isso por mim e poste aqui a experiência.
A Revolução, o Chico, o fado, um pouquinho da história de um outro país, a leitura, não consigo imaginar algo que falte para tornar o texto mais perfeito!
Abraços.
I'm speechless.
ExcluirMuitíssimo obrigado por seu comentário.
Acho que encontrei (conquistei) mais uma leitora. Não faz ideia de como isso é gratificante para um escritor amador.
Aos pouquinhos eu chego ao milhão de leitores. Rsrs
Enquanto isso, estou muito satisfeito com a minha "meia dúzia" de queridos e seletos amigos/leitores.
Abração!
01, somente agora tomo conhecimento deste seu blog, após comentário de minha esposa que leu, e achou ótimo, este último post a respeito da Revolução dos Cravos, o qual apareceu nas atualizações do facebook.
ResponderExcluirConfesso que o invejo (Inveja boa, de felicidade de saber aonde você chegou), o admiro e tenho grande orgulho e honra de ter conhecido, estudado e convivido com uma pessoa como você. Você merece estar onde está!!
Acabei de ler todas publicações, a achei simplesmente esplêndidas.
Permito-me plagiar uma frase de um "jovem" amigo nosso, também do CFO 97/99, que, com todo respeito, em suas “loucas divagações”, afirmou: “Tenho orgulho de dizer que esse é o 01 da minha turma!!”.
Grande abraço, meu amigo,
Sucesso em seu doutoramento,
02
P.S.1: Em virtude de minha ignorância a respeito, ao procurar o significado do adjetivo a você atribuído “tonitruante” não pude deixar de (re)lembrar de um certo professor (instrutor?) de Direito Administrativo, o qual invariavelmente solicitava ao 01 da turma a leitura de determinados textos, por sua voz de “locutor”... Lembra-se disso?