quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Onde Harry Potter canta fado


Hoje faz exatamente duas semanas que cheguei a Coimbra. No calendário dos dias comuns e de rotina, um curto intervalo que separa duas quartas-feiras. Mas para mim essas semanas ocorreram em uma dimensão absurdamente lenta, que os fizeram parecer meses.  Tanto coisa, tanta novidade, pessoas e costumes novos, providências burocráticas e consulares, enfim, o tempo é realmente algo relativo e vivenciado subjetivamente, apesar de exato e inexorável.

Mas voltemos ao fio da meada. Fiquei de relatar como foi a aula inaugural do doutorado. Pois bem, após estrear o meu novíssimo e lusitano ferro de passar roupas, deixando meu terno em condições de uso, preparei-me com o devido formalismo para a aula inaugural. Com exceção da farda que uso no dia-a-dia, estou acostumado a trajes mais informais. E até pensei em ir dessa forma. Parei. Refleti: estou indo para a aula inaugural do doutoramento em uma faculdade que tem 700 anos de existência! O ferro foi de fato imprescindível!!!

Modéstia a parte, fui todo elegante em direção à secular universidade. Era um dia ensolarado e os poucos metros que me separavam da Faculdade de Direito foram percorridos com orgulho e cabeça erguida. Não foi fácil chegar até aqui. Acredito que para sair será ainda mais difícil, mas vontade e perseverança não me faltarão.

A subida (sim, tudo aqui ou sobe ou desce) foi ao longo de um caminho que margeia um aqueduto, que remonta ao tempo do Império Romano (pra se ver como as coisas aqui são remotas), e que abastecia a parte alta da cidade. Lindo, como aqui em baixo se pode ver:


Chama-se Aqueduto de São Sebastião, popularmente conhecido como os Arcos do Jardim, por se localizar em frente ao Jardim Botânico da cidade.

Chego então à entrada da Faculdade de Direito. A primeira coisa com que se depara é um portal, com uma belíssima e (mais uma vez) antiquíssima porta férrea, datada de 1634, que emblematicamenta dá acesso à parte mais antiga da Universidade de Coimbra, onde se localiza também a Faculdade de Direito.

Transposto esse monumento, visualizamos uma belíssima praça, o centro histórico da Universidade e também local onde funcionava um palácio real. Vê-se inúmeros grupos de turistas a se misturar com os estudantes. Um clima bem diferente. Essa torre do relógio é um marco na cidade.



Após, obviamente, me perder dentro de um labirinto de corredores e salas, chego onde começa minha história em Coimbra. Deparo-me com algumas pessoas a aguardar em frente à sala destinada para tal. Quando entramos, enquanto tudo era preparado, tentávamos fazer contato, e logo uma mulher que sentou ao meu lado puxou assunto (chama-se Cláudia, e prevejo que seremos grandes amigos): Você é de onde? Chegou a muito tempo? E coisas assim...

Quando a mesa foi então composta, silêncio! Ao centro, uma mulher, a diretora da Faculdade de Direito. Em 700 anos de história, essa é a primeira vez que uma mulher ocupa esse cargo. Mas os avanços param por aí. Tenho descoberto que aqui o tradicional é a regra! Mudanças não são tão freqüentes. Um exemplo: “nunca antes” na história da faculdade houve um professor que não fosse português e que não tivesse tido toda sua formação acadêmica na própria Faculdade de Direito de Coimbra. Essa é apenas uma entre muitas outras coisas que estou descobrindo e que certamente descobrirei. Algumas me chocam, pelo menos por enquanto.

Outros dois professores sentaram-se ao seu lado. Quando começaram a falar, começaram os meus problemas: meu Deus, que idioma aquelas pessoas estavam falando? Pensei que a Língua Portuguesa fosse uma só e que na sua origem fosse ainda mais genuína e clara.

A primeira coisa que se descobre quando se chega a Portugal é que se justifica plenamente a diferença que vemos em computadores e programas de informática, quando há as opções: “Português de Portugal” e “Português do Brasil”?

Olha, eu juro, do que foi falado naquele dia, eu entendi apenas uns 40%. Quando Fernando Pessoa falava que “Minha pátria é a Língua Portuguesa” eu cheguei a acreditar que tinha dupla nacionalidade e que minha aventura por aqui seria tranqüila em relação ao idioma. Naquele momento foi meio desesperador, mas agora percebo que tudo é uma questão de costume e estar atendo ao sotaque carregadíssimo deles e a algumas palavras cujo sentido são diferentes ou mesmo únicos por aqui.

Bem, após o falatório, e para encerrar, um momento lúdico: a apresentação de um trio de alunos da faculdade (muito novos, com cerca de 20 anos) que tocaram e cantaram fado para os presentes. Aparentemente, algo simples, mas não na Universidade de Coimbra. Os três estavam trajados com a indumentária própria dos alunos de Coimbra: um tipo de terno preto com camisa social branca por baixo e uma capa preta nos ombros. Esse traje é uma das coisas mais inusitadas de Coimbra. Achei essa foto na internet, não são os alunos daquele dia, mas era exatamente assim que eles estavam:


Descobri que esse traje já foi obrigatório por aqui (até a década de 1970). Hoje ele deve ser obrigatoriamente utilizado para representações oficiais da universidade, como o caso do trio que cantou fado, como também no que eles chamam de praxe: o nosso famoso trote nos calouros. Vê-se muito nesse período do ano vários grupos de veteranos, devidamente trajados, fazendo com que os calouros cantem pelas ruas, realizem exercícios físicos ou mesmo sendo colocados em posições vexatórias. É, a imbecilidade humana não tem fronteiras!

Uma curiosidade: esse traje típico dos alunos de Coimbra inspirou a autora de Harry Potter a criar o uniforme dos alunos da escola de magia Hogwards. A autora, JK Rowling, viveu por alguns anos antes de começar a escrever Harry Potter como professora de inglês na cidade do Porto, Portugal.  Um vez aqui, teve contato com esse uniforme e com algumas estórias de Coimbra. Pronto, bastou inspiração e mais alguns anos para ela ficar multimilionária.  Já pensou se passo por esse processo?? Chega de devaneios. Ah, no filme há também outras semelhanças com o (antigo) estilo acadêmico de Coimbra. Meu blog também é cultura (ainda que inútil).
Atualmente, essa cena é comum na universidade. Mochilas e trajes de Harry Potter. Inusitado, não?Mira o estilo da senhorita...


Voltando ao fado, foi belíssimo! Foram umas três canções, em que um cantava (divinamente) e os outros dois tocavam dois tipos de violão. Fiquei emocionado de tão bonito!

Ah, outra tradição: na hora de cantar e tocar, a capa deve ser envolvida no pescoço, como se fosse uma echarpe. Como  estavam os alunos de duas fotos atrás. E também, de acordo com os costumes, a capa que se sobrepõe ao uniforme nunca deve ser lavada. Eu vi cada uma pelas ruas...

Apesar de jovens, os alunos tocavam e cantavam com vontade e verdade, sem se intimidar com os presentes ou os com os professores (doutores). Pareciam estar orgulhosos de realizar aquilo. O lado bom da tradição. Bonito de se ver! Ao final, fizeram até um grito de guerra típico, gritando aos berros umas frases que não entendi direito. Mais tradição...

Após isso, passamos a uma visita guiada às instalações (não, essa palavra não deveria ser aplicada aqui) melhor seria, aos monumentos que integram a Faculdade de Direito, que também já foi palácio real.

Aqui... tem tanta coisa legal dessa visita pra contar, mas já é tarde e meus olhos ardem.

Mas antes termino com um poema que tem me feito refletir sobre (os encantos de) minha terra:


Canção do exílio

"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."


                              Gonçalves Dias

Quem nunca ouviu esses emblemáticos versos que, segundo me lembro das aulas de literatura, faziam parte do primeiro movimento do Romantismo brasileiro, no século XIX. Mas qual sua correlação com este blog? E com este que o escreve? Além da óbvia alusão à saudade e aos encantos da pátria natal, que também sinto por agora, descobri nesses dias que tenho algo em comum com Gonçalves Dias. Revelo-o no próximo post.

13 comentários:

  1. Bom te ver feliz, ó gajo...saudadade...Rogerio

    ResponderExcluir
  2. Agóra com fotos....ta ficando bom isso aqui!!!
    Gustavo.

    ResponderExcluir
  3. Além dos detalhes descritos neste post, as figuras postadas deram uma realidade maior nessa sua "maravilhosa" aventura. Parece que esse(post) ficou menor que o primeiro. Mas na verdade, eu que fiz uma leitura voraz por conta da espera da publicação.
    Devia-se comprometer ao menos uma vez por semana atualizar seu blog. Sei de seus afazeres, mas acho que todos concordam com o que eu digo. Abraço!

    ResponderExcluir
  4. vc acredita que em 1996 vi muitos e muitos alunos nessa escadaria com essa capa preta?
    Acho legal manter essa tradição. Vá se acostumando com esse português que, muitas vezes, precisamos de tradução.
    vc já sabe o que é autoclismo?

    Abraços

    ResponderExcluir
  5. Não, autoclismo ainda não, mas aprendi cada uma... Qualquer dia vou escrever um post sobre essas coisas. Mas preciso de mais tempo aqui.
    Bruce, Rogério e Gustavo: obrigado pelo carinho. Vou tentar manter regularidade na postagem.
    Um grande abraço.

    ResponderExcluir
  6. Autoclismo fui eu, Rosa maria. Agora, vou assinar....

    Abs

    ResponderExcluir
  7. Muito Porreiro este Post.
    Quando falou dos trajes logo lembrei de Harry Potter...
    Estou acompanhando sua aventura de D'Além Mar.
    Um grande abraço

    ResponderExcluir
  8. Valeu Maurício, e obrigado por aumentar meu vacabulário lusitano. "Porreiro" eu ainda não ouvi por aqui, mas já descobri o significado. Obrigado pelo elogio.
    A propósito, seu comentário foi "gira".
    Descobri recentemente que essa palavra, em Português de Portugal, quer dizer "irado". Apenas retribuindo a gentileza...
    Abraços meu amigo!

    ResponderExcluir
  9. Olá! Conheci seu blog por indicação do Bruce, um grande amigo da faculdade. Li as postagens e achei simplismente incrível, mal posso esperar para ler o próximo post, é como se eu realmente estivesse vendo o que voce descreveu. Muita força na sua nova jornada e boa sorte com o apartamento. Abraços.

    ResponderExcluir
  10. Obrigado Dâmaris, pelo simpático comentário. Fico feliz que tenha gostado. Mande um abraço pra Bruce. E outro para você!!!

    ResponderExcluir
  11. Tainá Aguiar Junquilho22 de outubro de 2011 às 18:58

    Ó quão boa é essa vida não é mesmo...?!
    Essa narrativa - escrita por quem notoriamente se vê, tem o dom da "palavra" - me lembra saudosamente meus dias na Espanha!
    Ahh como a Europa é linda e tão cheia de cultura não é mesmo?
    Espero que você faça como Oswald de Andrade, que foi ao Velho Continente retirar de lá o que de melhor podia oferecer, para perceber que o Brasil com toda sua diferença e mestiçagem podia mesclar tudo na antropofagia modernista!
    Tenho certeza que o doutorado renderá bons frutos a nossa querida "terra brasilis".. ;)
    Adorei a narrativa e aguarda ansiosa o próximo capítulo!
    ;** abraços Tainá

    ResponderExcluir
  12. Hahahaha, eu ia falar de harry potter, agora falta uma foto sua com o uniforme de hogwarts, rsrsrs, caro amigo, siga com sua aventura , tente trocar no seu vocabulario a palavra problema por oportunidade, porque na verdade todo problema nada mais e do que a oportunidade para... o resto da frase vc completa!

    Abração

    ResponderExcluir
  13. Rosa Maria, descobri o que é "autoclismo". Andando por uma loja de decoração e coisas de casa, vi o esse nome em um letreiro de ofertas para "descarga de banheiro". Como dizem por aqui, "pronto", resolvido o mistério!
    Tainá, grato pelo simpático comentário.
    Bruno, a minha foto com o uniforme de Hogwards ficará para quando eu for defender a tese. É obrigatório o uso para essse momento. E quanto ao completamento da frase, arrisco: "todo problema nada mais é do que a oportunidade para irmos além do óbvio." Beijos e saudades!!

    ResponderExcluir