A ideia que eu tinha na cabeça era tão mais interessante e genuína! Envolvia superação, valorização do mais fraco, sobrevivência, algozes e vítimas. Todos os ingredientes de um romance daqueles. Daí um argumento histórico-científico, com fundamento "na realidade" dos fatos, fez tudo voltar a ser lógico, racional e um pouco sem graça, acabando com todo o encanto da coisa. Foi assim com o papai noel, com o super homem, com o Lula... Eis que agora foi a vez da feijoada.
Imaginar que o prato mais democrático e genuinamente brasileiro teve sua origem numa senzala, onde eram "generosamente" dispensados os restos e os miúdos do porco, inservíveis aos tiranos senhores de escravos, foi uma ideia que durante muito tempo permaneceu inabalada e mítica para mim. Na condição subumana e de miséria, os escravos haviam nos legado o prato que hoje é servido tanto no self service da esquina como no restaurante estrelado pelo Michelin. Não havia sido criação de chef algum. A realidade cruel e inglória havia criado a nossa gastronomia mais genuína. Um prato cheio de cores e sabores, que eu e meus amigos estávamos sentindo tanta falta aqui em Coimbra.
Mas aquela versão da origem da feijoada não resistiu a uma pequena pesquisa que fiz para saber como eu faria uma feijoada para os amigos na minha casa. O que um pesquisador - chato e destruidor de fantasia - descobriu foi que essa história dos escravos terem "inventado" a feijoada não tem fundamento algum. Segundo Carlos Augusto Ditadi, em artigo publicado na revista Gula de 1998, essa alegada origem da feijoada "não passa de lenda contemporânea, nascida do folclore moderno, numa visão romanceada das relações sociais e culturais da escravidão no Brasil".
Continuando a "destruir" nossa imaginação e fantasia gastronômicas, diz que a sociedade escravista do Brasil, nos séculos XVIII e XIX, era marcada pela escassez de alimentos e pela fome, em função da prática da monocultura, do extrativismo mineral e do trabalho escravo, que demandava alimentar muitas bocas. Um escravo era muito caro para deixá-lo morrer de forme. Isso afetava até os "donos" desses infelizes, que não iriam dispensar nenhum miúdo nem partes menos nobres do porco. Os escravos que comessem farelo e farinha de mandioca. Além disso, tudo aquilo era, à época, considerado também uma iguaria. O pesquisador descobriu recibos de um açougue carioca no século XIX que registrava a venda de carnes, linguiças, língua, orelhas, pés, etc. Ou seja, tudo era apreciado, inclusive essas partes que são a essência da feijoada e não seriam descuidadamente "jogadas" aos escravos.
A origem "verdadeira" da feijoada não tinha nada que ver com os escravos. Tratava-se de uma adaptação dos costumes culinários portugueses, notadamente das regiões da Entremadura, das Beiras e de Trás-os-Montes e Alto Douro. Nessas regiões era comum misturar feijões de vários tipos com linguiças, orelhas e pé de porco, numa espécie de cozido muito comum na Europa, como há na França o cassoulet, que também usa feijão (branco) no seu preparo. Nada de escravos, nada de superação e de sobrevivência do mais fraco. A origem da feijoada, de fato, nada mais é do que isso, uma adaptação de costumes culinários trazidos pelos portugueses. Claro que ela se tornou diferente e tipicamente brasileira, mas, na origem mesmo, nada de romance com protagonistas escravos.
Mesmo com o coração partido por não ter mais o orgulho de imprimir-lhe a chancela originária de made in Brasil, decidi trazer brasilidade a Coimbra chamando uns amigos para uma feijoada aqui em casa. O feijão preto eu já tinha, fruto de "contrabando" das pessoas que vieram do Brasil me visitar. Iniciou-se então um processo que foi uma alegria nos últimos dias. Comecei por catar o feijão. Enquanto o fazia, relembrava aqueles versos de João Cabral de Melo Neto, do livro "A Educação pela Pedra", e sua poderosa metáfora desse doméstico processo com a escolha das palavras e a escrita. Enquanto catava, pensava na possibilidade de um dia conseguir fazer isso com uma pitada de competência, pois acredito que escrever seja mesmo como catar feijão.
"Catar feijão se limita com escrever:joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco."
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco."
Após "jogar fora o leve e oco, palha e eco", deparei-me com algumas dificuldades de ingredientes. Coisas que não achei por aqui, como paio, linguicinha calabresa, carne seca e couve. Mas fora isso, após três dias preparando uma feijoada luso-brasileira, acredito que obtive relativo sucesso na empreitada. Modéstia a parte, ficou de lamber os beiços.
Como até hoje não apareci por aqui, cá estou (para os que me conhecem, não se espantem, o novo visual eu explico nos próximos textos) em fotos da preparação, da mesa posta e dos amigos que tornaram uma simples quarta-feira em festa na minha humilde residência:
Como disse certa vez um amigo meu: o segredo do prato é a cor. Quando perceber que seus convidados estão azuis de fome, servi-o. É sucesso na certa!
Ah... como foi agradável aquela tarde. A comida estava lá, mas foi apenas o motivo secundário que estrategicamente escolhi para trazer gente querida e agradável para dentro da minha casa. Experimente fazer isso também. Garanto que o resultado será ótimo. Primeiro, decida que você irá cozinhar algo. Pode ser algo muito simples, isso não importa. Não sabe cozinhar? Acredite, hoje tudo é possível com um pouco de boa vontade. Aliás, deposite toda sua (boa) vontade e energia na realização desse processo. Eu, por exemplo, nunca havia feito uma feijoada (que meus convidados não leiam isso). Envolva-se, selecione os ingredientes, prepare tudo, entradinhas, música, pratos, talheres, guardanapos, bebidas... Um exercício de alteridade que lhe fará um bem danado e será motivo de bom bate-papo e de agradável convivência.
Já ia esquecendo de duas coisas muito importantes. Se decidir fazer isso, primeiro, tão importante quanto selecionar os ingredientes de qualidade é escolher pessoas de igual característica para sua reuniãozinha. Gente chata é batata: faz tudo desandar!
Outra coisa, e a mais importante: não se esqueça das flores. É preciso decorar o ambiente nem que seja com um vasinho de margaridas. Isso não irá afetar o sabor da iguaria que você irá preparar. A falta delas poder deixar insosso não o prato, mas o ambiente. Elas são imprescindíveis porque serão também comidas. Não fisicamente (se bem que há ótimos pratos com pétalas de flores), mas serão uma leve e simbólica entrada para os seus convidados. Ao comê-las com os olhos, elas serão responsáveis por encher-lhes de algo imaterial. Eles sairão plenamente saciados da sua casa. E, sem saber por que, lembrar-se-ão com carinho de que alguém um dia preocupou-se, nos detalhes mínimos, em alimentar-lhes o corpo e a alma. É preciso que cuidemos uns dos outros!
Enquanto eu preparava tudo para receber meus amigos, ouvia Bethânia. Entre uma música e outra, ela declamou um poema que descobri ser de uma poetisa portuguesa, Natália Correia (1923-1993). Com o vigor de sua interpretação, Bethânia lembrava-me do que eu não poderia deixar de me atentar ao receber meus amigos:
"Oh, subalimentados do sonho
A poesia é para comer"
Larguei tudo e fui correndo comprar as flores.
Cuidar bem uns dos outros.... Que coisa boa! Enriquece o espirito e faz bem pra alma.
ResponderExcluirDe quebra, ficamos realizados e felizes.
Um abraço Silvagner.
Seu blog nos enriquece.
Sueli R C Azevedo
Obrigado Sueli,
ExcluirEspero ter cuidado bem de todos quando vieram aqui.
Abraços.
"Lembrar-se-ão com carinho de que alguém um dia preocupou-se, nos detalhes mínimos, em alimentar-lhes o corpo e a alma. É preciso que cuidemos uns dos outros!"
ResponderExcluirObrigada por nos cuidar tão bem!
Amazing, again!
Bárbara
Querida Bárbara,
ExcluirNós sobrevivemos (e vivemos) aqui pois nos cuidamos mutuamente.
Um beijão.
Ah, como é bom ter amigos. Se a comida é o alimento do corpo, os amigos são o melhor alimento para alma! Adorei conhecê-lo mais! Bjos.
ResponderExcluirCarol,
ExcluirMe too.
A casa estará sempre aberta, com ou sem comida.
Beijos.
Tudo muito bonito.. Mas vá se preparando, pois quando vc vier ao Brasil não sairá da cozinha.
ResponderExcluirConte a história também da caipvodca. De onde foi criada e depois, a recriação nas suas mãos.
Faça outra reunião antes de seus amigos voltarem ao Brasil para que eles possam experimentar a melhor caipvodca e o melhor mojito. Afinal, não é só de comida que vive o homem.
Mas que me deu muuuita água na boca essa foto... Isso não posso negar.
Quer dizer que eu é que vou para a senzala? rsrsrs
ExcluirSobre as bebidas, penso em fazer um novo encontro. Mas só de belisquetes e bebidas.
Abração.
Que lindo!
ResponderExcluirE que fome que me deu. Também sinto toda essa saudade de uma boa feijoada...
Prazer em conhecer você!, ainda mais agora sabendo que é bom cozinheiro, hahaha! :D
Beijo!
Ei Paty,
ExcluirO prazer é todo meu. Espero que tenhamos oportunidade de nos conhecer em melhores condições. Caminhar de madrugada, depois do show do Coldplay, buscando um táxi, não foi a melhor delas. Rsrsrs
Beijos
Concordo com Bruce. Quando voltar ao Brasil terá que providenciar uma agenda para organizar as demonstrações a domicilio. Como irmã terei preferência rsrsrsrs. Ótimo texto, como sempre. Nos alimentou culturalmente e despertou uma fominha..... Beijos. Silmara
ResponderExcluirEi Silmara,
ExcluirJá está marcado na agenda. No topo das prioridades.
Beijos
Minha casa tambem ficará às suas ordens. Já provei alguns pratos preparados por voce e sei que são deliciosos, eles tem esse ingrediente raro que alimenta o corpo e alma, o carinho que faz com que recebamos amor junto com o alimento.
ResponderExcluirBelo texto, gastronomia cultural, curti muito. Essa historia da feijoada nascida nas senzalas e o que eu tambem acreditava. snif... snif...
Celia Abreu
Ei Celia,
ExcluirQuando eu for em (ao?) Alegre, tentamos alguma coisa. Só não vale criar muita expectativa.rsrs
Abração
"Pelos campos há fome
ResponderExcluirEm grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão"
Geraldo Vandré também decantou as flores, só mesmo pra dizer que não havia falado delas..
O engraçado é ter lido este post 10 minutos antes do almoço.. água na boca na certa. hahaha
Sinto uma pontinha de orgulho de ver como meu país está bem representado aí pelas terras colonizadoras..
=)
Como diria minha avó, me pareceu um regabofe de primeira esse aí! hahaha.. a vida é feita mesmo desses momentos em que reunimos pessoas especiais.. se der pra ser com uma comidinha bem gostosa e cheia de "Sazon" então..
Tainá,
ExcluirObrigadíssimo por seu comentário sempre tão carinhoso.
O regabofe foi mesmo de primeira. kkkk
Beijinhos
Caro Silvagner !!
ResponderExcluirSeu texto fez-me recordar o que aconteceu-me ha tres anos passados la embaixo na Estremadura. O fim de semana aproximava-se e fui logo convidada por um grupo de amigos portugueses a demonstrar o real paladar da ''Feijoada brasileira''. Um desafio que a principio parecia dificil ultrapassar , pois, sem os ingredientes principais necessarios a elaboracao eu fiquei a principio confesso, amedrontada !! Entretanto, decidi dar uma passada pelo super mercado '' intermarche'' , saber o que de melhor eu poderia encontrar. Foi quando diante da imensa variedade de ''ENCHIDOS'' da terra , que eu decidi fazer certas substituicoes na receita. Tudo comecava pela escolha do feijao , tao diferente do nosso e o tempo certo de cozimento . Confesso que levou bem mais tempo pra ficar no ponto!!!! kkkk a couve que nao era a mineira e sim a portuguesa , consegui dar um jeitinho para disfarcar !!!! Bem , tudo pronto , provado e aprovado por mim , mas sem saber se o seria pelos outros segui para a casa dos amigos levando o prato que representa o nosso Brasil. Ao chegar a casa dos amigos, a mesa ja se encontrava '' aberta'' ( portugal ) Posta ( Brasil ) , um grupo de amigos ja a espera !! Chego timidamente com a minha feijoada e qual a minha surpresa !!!foi um imenso sucesso !!!! que alivio !!!!!! o segredo ??? o sabor inigualavel dos enchidos portugueses que deu a minha ''RECEITA'' tudo o que eu precisava pra nao fazer '' feio'' !!! nao esqueci da laranja , a farinha de mandioca , ah , essa eu havia levado comigo do nosso pais !!!! belissimo texto mais uma vez Silvagner com poesia e historia !! sempre um grande investigador !!! PARABENS !!!!!
Obrigadíssimo Maria José,
ExcluirFico feliz em saber que, apesar da falta de alguns ingredientes, outra brasileira conseguiu realizar essa façanha gastronômica e ser elogiada.
Não importa os ingredientes, a tecnologia é que é brasileira.
Abraços
lol aqui esta a minha assinatura !! Maria Jose Suenaga !!
ResponderExcluirBelissimo texto, no fim das contas o compromisso de todo ser humano deveria ser com a poesia, as cores,o vai-e-vem das palavras...sublimacao total da alma...nas entrelinhas desse texto impecavel, lembrei-me de um compromisso que rege a filosofia tolteca:"sempre de o melhor de si, em qq circunstancia, faca o melhor:nem mais nem menos.Rejeite sacrificios ou esforcos extenuantes:faca o q puder, da melhor maneira possivel." Avante, meu "Saramago tupiniquim"!!!!! Abracos Nelson Monteiro Neto
ResponderExcluirAi Nelson,
ExcluirO que seria de nós se não fossem os elogios e carinho dos amigos. Muito obrigado pelas palavras de incentivo. Mas coitado do Saramago. Deve estar revirando no túmulo com essa comparação. rsrs
Beijos.
Silvagner, se eu não tivesse comido uma feijoada à brasileira na semana passada, eu juro que ia providenciar uma, logo, logo! O texto e as imagens fazer crescer água na boca! Parabéns pela literatura e pelos progressos de "Grand Chef"! Esse doutoramento está a render muitos dividendos, pelo que tenho lido. A isso é que se chama "aproveitar as sinergias", não é?!
ResponderExcluirPois bem, agora vamos a um detalhe prático de quem já anda por cá há muitos anos: quando quiseres "paio" em Portugal, procuras por "salpicão"...salvo alguma variante no tempero, vem a dar ao mesmo. A "cabresa" por aqui é chamada "linguicinha"...e tb difere um pouco nos temperos, mas faz o mesmo efeito na feijoada.
Adorei o relato da tua pesquisa sobre a origem da feijoada brasileira. Por acaso eu já conhecia, mas fico sempre meio frustrada quando digo isso a alguém...as pessoas olham-me desconfiadas, como se estivesse a inventar essa história...eheheh
Continuação de grandes aventuras para ti!
Grande abraço!