Com a alma mais leve e a mochila ainda pesada, regressei a Santiago. Após o término do período letivo em Coimbra, a alma aliviou-se dos encargos acadêmicos, que me consumiram energias excessivas. A mochila, bem..., creio que um dia conseguirei adequar seu peso às minhas reais necessidades. O "mantra do desapego" precisa ser repetido com mais convicção!
Por que novamente Santiago?
(Para quem ainda não leu, seria interessante a leitura prévia de o Caminho)
Aquela frase que encontrei gravada na pedra durante o caminho ("Santiago és el principio"), para além da metáfora de uma nova vida após a peregrinação, ecoava em minha mente chamando-me de volta. Fiz coro à expressão cunhada pelos séculos: "a Santiago volta-se sempre". A nove dias de regressar ao Brasil, não resisti ao eco. Arrumei minha mochila e retornei à cidade que me recebeu ao fim de uma breve vida como peregrino, que expirou após dolorosos e felizes 220 quilômetros. Nada de eco nem metáfora, desta vez Santiago não foi meu destino, mas de fato o princípio. O princípio de uma nova jornada que decidi iniciar às 07 horas de uma silenciosa terça-feira de julho.
Devidamente equipado e com o espírito de um peregrino, novamente me postei em frente à Catedral de Santiago. Era uma manhã fria e a cidade estava deserta. Senti o peso dos anos na fina névoa que delicadamente envolvia as ruelas milenares feitas de pedra e fé. De costas ao sol nascente, iniciei os passos em direção ao "fim da Terra". Que nem é tão longe assim. Fica a cerca de 87 quilômetros de onde eu estava. Até lá, desabrochava-se a cada passo adiante uma nova vida peregrina, de brevíssimos três dias pelas terras da Galícia.
A rota de peregrinação religiosa a Santiago existe há pelo menos 12 séculos, desde quando, próximo àquele local, como relatei no texto acima referenciado, foram encontrados os restos mortais do apóstolo de Cristo, São Tiago. Porém, mesmo antes dessa descoberta, ocorrida no século IX, que oportunamente trouxe um eixo de peregrinação cristã à Península Ibérica, recém ocupada pelos árabes desde 711, havia relatos de uma rota de peregrinação coincidente, realizada pelos celtas, o antigo povo que habitava aquela região. Muito antes da chegada dos romanos ou dos cristãos, o sol era então o seu objeto de adoração. Para reverenciá-lo, onde "inexplicavelmente" ele se afogava no mar sem fim, percorriam a trajetória terrestre equivalente ao percurso que vai da aurora ao crepúsculo. E mais ou menos sobre esse trajeto surgiu posteriormente o caminho de Santiago de Compostela.
O pensamento que se tinha durante a Antiguidade, que se estende, cronologicamente, até a Queda do Império Romano do Ocidente, no século V d. C., era de que o mundo terminava onde Europa encontrava o tenebroso Oceano Atlântico, que naquela época ainda nem tinha esse nome. O lugar onde achavam que a Terra acabava era uma península no extremo ocidente de uma região que os romanos chamavam de Gallaecia (hoje, Galícia). Deram-lhe o nome de Finnis Terrae ("fim da Terra"), ou, Finisterre, como hoje chamam a cidade que lá existe. É aí que fui parar. Em três dias, 87 quilômetros e pensamentos chacoalhados pelos passos passados sozinho, cheguei ao lugar onde pensou-se, um dia, que o mundo acabava.
Quanto à inevitável comparação entre o caminho de Santiago e o caminho de Finisterre, além da evidente menor distância, percebi que ambos são semelhantes. A Galícia continua linda e tudo é muito bem sinalizado e estruturado. Mas o que senti mesmo foi a falta de uma boa companhia. Caminhei sozinho durante todo o percurso, apenas cumprimentando os demais peregrinos. Quando minha meta era Santiago, tive a sorte de contar com a aprazível presença de dois amigos, Ricardo e Bárbara. Pegava-me a rir sozinho ao lembrar de nossas brincadeiras e bobagens. E sentia falta do olhar cúmplice que sem nada a dizer, motivava a caminhada. Mas, quando deixei Santiago para trás, foi em solidão que cheguei ao "fim do mundo". Além de descobrir que não sou tão interessante para ficar a sós demasiado tempo comigo mesmo, percebi que os caminhos de Santiago (e da vida) não tem graça quando percorridos solitariamente o tempo todo. Fora os momentos de reflexão, necessários ao conhecimento próprio, é na companhia humana que tudo fica mais divertido e menos pesado.
Faz alguns meses que vi pela televisão o depoimento de uma senhora muito alegre que já realiza a peregrinação à cidade de Fátima há dez anos. Diferentemente dos Caminhos de Santiago, essa peregrinação parece ter, exclusivamente, um caráter religioso. O repórter lhe perguntou o que a motivava realizar tantas vezes a mesma e sofrida peregrinação. Muito disposta e sorridente, respondeu-lhe que era a companhia de seus amigos durante a caminhada e as relações de solidariedade e cuidado que se estabeleciam entre eles. O repórter, buscando extrair o vínculo religioso às repetidas peregrinações daquela simpática senhora, indagou: "Haveria razão para a senhora realizar a peregrinação sozinha?". Ela sorriu serenamente e respondeu um delicado e eloquente: "não!". Comovi-me com a resposta mais cristã que já ouvi.
Além dos passos solitários, desta vez desvinculei-me da história de Santiago e voltei-me para a terra por onde pisava. Afinal, eu estava indo para o fim dela. Vindos de todas as partes da Europa, os caminhos a Santiago, e ao "fim da Terra", desembocam na Galícia, uma região ao noroeste da Espanha. Além do deslumbramento por sua beleza natural, que tentei expressar em "o Caminho", fascinei-me também pela sua história e cultura, tão ricas e particulares que, caso não fossem os acontecimentos políticos do passado, seriam suficientes para constituir um país autônomo. Tanto que com a crise que ronda por lá, vi cartazes pelas ruas de Santiago conclamando a população a se articular para a independência da Galícia. Hum, já viu aonde isso vai dar!
Faz alguns meses que vi pela televisão o depoimento de uma senhora muito alegre que já realiza a peregrinação à cidade de Fátima há dez anos. Diferentemente dos Caminhos de Santiago, essa peregrinação parece ter, exclusivamente, um caráter religioso. O repórter lhe perguntou o que a motivava realizar tantas vezes a mesma e sofrida peregrinação. Muito disposta e sorridente, respondeu-lhe que era a companhia de seus amigos durante a caminhada e as relações de solidariedade e cuidado que se estabeleciam entre eles. O repórter, buscando extrair o vínculo religioso às repetidas peregrinações daquela simpática senhora, indagou: "Haveria razão para a senhora realizar a peregrinação sozinha?". Ela sorriu serenamente e respondeu um delicado e eloquente: "não!". Comovi-me com a resposta mais cristã que já ouvi.
Além dos passos solitários, desta vez desvinculei-me da história de Santiago e voltei-me para a terra por onde pisava. Afinal, eu estava indo para o fim dela. Vindos de todas as partes da Europa, os caminhos a Santiago, e ao "fim da Terra", desembocam na Galícia, uma região ao noroeste da Espanha. Além do deslumbramento por sua beleza natural, que tentei expressar em "o Caminho", fascinei-me também pela sua história e cultura, tão ricas e particulares que, caso não fossem os acontecimentos políticos do passado, seriam suficientes para constituir um país autônomo. Tanto que com a crise que ronda por lá, vi cartazes pelas ruas de Santiago conclamando a população a se articular para a independência da Galícia. Hum, já viu aonde isso vai dar!
Mas voltando à cultura galega, chamou-me atenção o seu idioma. Foi uma surpresa constatar a sua semelhança com a Língua Portuguesa. Intrigado, fui então descobrir que no passado medieval, a região romana da Gallaecia, pós-ocupada pelos "bárbaros", também incluía boa parte do atual território português. Num acerto entre famílias nobres da região, a parte sul foi cedida a D. Afonso Henriques, que em 1139 tornou-se o primeiro rei de Portugal, reconhecido então como um reino, cujo limite, ao norte, passou a coincidir com o Rio Minho. Desde então, Portugal autonomizou-se em cultura e idioma próprios, tornando-se o país que, três séculos depois, contribuiu para tirar da Galícia o status de "fim da Terra". Além disso, a Galícia não conseguiu resistir à força de ocupação da coroa de Leão e Castela, permanecendo integrada ao território que, posteriormente, configurou-se na atual Espanha. Mas o idioma resistiu bravamente e ainda hoje lá não se fala o castelhano, mas o galego. Quer ter uma noção de como é o galego? Duas breves lições: primeira, troque os "j" e "g" por "X" (o som torna-se de fato mais parecido com o Português); segunda, Finisterre é Fisterra.
Aqui, placa do Governo em Galego, seguido da "tradução" em Castelhano.
Da aventura de se chegar ao "fim da Terra" há ainda muito por dizer. Por não querer enfadar, o que restou não dito fica para outro momento. Por ora, o que aqui se encontra é suficiente para, pelo menos, tornar o "galego" mais do que um simples qualificador do popular limão.
Finalizo com uma confissão pública: enamorei-me por esta terra chamada Galícia. Por cujos caminhos a atravessei de oriente a ocidente. Na verdade, a Galícia é que me atravessou, expondo-me à percepção de uma vida com mais simplicidade e emoção. Desde que voltei de lá, inexplicavelmente desatei a fazer poesia. Nosso romance pode ter sido efêmero, mas nossa poesia é eterna.
POEMA GALEGO
Gracia Galícia,
Por deixar-me pisar a tua negra carne
e beber o teu sangue de riachos cristalinos.
Foi como peregrino que toquei tua epiderme
e pulsei por entre teus caminhos,
as veias e artérias por onde fluem a emoção
dos que buscam Santiago, o teu santo coração.
Gracia Galícia,
Por encontrar-me em teus caminhos
marcados por setas amarelas.
Que no lúdico devaneio de passos doloridos
transformaram-se em d'alvas estrelas
a orientar minhas insones noites frias.
Gracia Galícia,
Por encontrar-me em teus caminhos
marcados por setas amarelas.
Que no lúdico devaneio de passos doloridos
transformaram-se em d'alvas estrelas
a orientar minhas insones noites frias.
Gracia Galícia,
Por lavar-me os olhos
quando diante de ti
tantas vezes chorei e emudeci.
E assim, calado,
as novas vistas avistaram
o espetáculo comum e cotidiano
de um nascente mundo clarificado
pela tua luz que vem do atlântico oceano.
Caminhando por ti, fui ao fim da Terra
tentar avistar meu horizonte perdido de liberdade.
Ora, se a Terra lá não acaba de verdade
permaneço então na eterna descoberta
de quem eu poderia ter sido
caso não fosse o equívoco
de viver conforme pensam
aqueles que de mim nada sabem.
Pois se soubessem talvez teriam a compaixão
da dor sentida por desviar-me do padrão
dos que pensam que a vida
é só comida, labuta e reprodução.
Caminhando por ti, cheguei ao fim da minha terra
e mirei o abismo onde eu acabo.
É lá que caem as lágrimas que salgam
o meu onírico e revolto oceano.
e mirei o abismo onde eu acabo.
É lá que caem as lágrimas que salgam
o meu onírico e revolto oceano.
Grata Galícia,
Disseram que em ti o mundo acabava
e sol no mar se afogava.
Tudo mentira.
Para além do horizonte
o sol ainda brilha.
E o mundo, dourado e exuberante,
após conhecer-te
renasce em mim a cada passo adiante.
A nossa biza Izaltina usava muito essa expressão "destar a fazer algo" e voce incrivelmente desatou o pudor que normalmente cerca os escritores ao apresentarem seus textos e poesias ao publico. Escancara-os com toda a força expondo as verdades do âmago, o ser real que habita em nós. Cada dia te admiro mais e te gosto mais. Bom retorno. Estamos com saudades!
ResponderExcluirCelia Abreu
Grato sempre pelas suas palavras de incentivo e apoio. Estou chegando...
ExcluirEstou impressionada... não com a qualidade dos escritos, que já não surpreende teus leitores, mas com a sincronicidade. Jung afirmava tratar-se de acontecimentos que se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado.
ResponderExcluirEstive pensando em ti nestes dias e decidi mandar uma mensagem para saber como estavas. Sequer imaginava que tu estavas a peregrinar ao “Fim da Terra”. Que bela resposta recebo com esse post! Quanta persistência, força e coragem! Estar só é permitir o mais intenso dos encontros!
Tens razão, contudo, quando falas que “os caminhos de Santiago e da vida não tem graça quando percorridos solitariamente o tempo todo. Fora os momentos de reflexão, necessários ao conhecimento próprio, é na companhia humana que tudo fica mais divertido e menos pesado.” Quando a companhia refere-se a ti, sem dúvida, os caminhos tornam-se ainda mais especiais!
Confesso que do outro lado do Atlântico, “(...) chorei e emudeci”.
Gracia Silvagner, agora também, "da Galícia"!
Beijos
Bárbara
Você é uma fofa e cúmplice. Não quero perder-te nunca de vista.
ExcluirNem da vista visível nem da vista do coração.
Beijos e saudades.
Grande amigo!!! Com imensa alegria leio mais este enriquecedor texto. Parabéns pelo escrito e por continuar o caminho!!! Ao ler este texto me senti novamente em sua companhia e de Bárbara percorrendo aqueles 220 quilômetros em inesquecíveis dias felizes que compartilhamos. Readaptado ao Brasil sinto o quão importante foi aquele caminho e a certeza de que construímos amizades verdadeiras construídas à base de muita cumplicidade, sinceridade e porque não dizer de dor. Abraços.Ricardo.
ResponderExcluirEu amei o seu texto e o seu poema,mas como eu ainda sou pequena eu não entendi.Depois pelo skype vc me explica o poema ok?????
ResponderExcluirBJS Ana Luiza
Mais um incrível texto(como já era esperado)...
ResponderExcluirTu consegues facilmente transportar-nos para onde quiseres.
A sensação que tenho depois que leio seus textos é de que já estive nesses lugares, que já vivi estas emoções, que já senti os aromas e provei também os sabores.
Nenhuma vitória é alcançada sem dor. Ou melhor... O sabor da vitória é melhor quando se tem obstáculos para ser superados.
A dor existirá, mas sempre conseguirá superar todos eles.
Você é um exemplo de determinação, de amigo, de escritor(e recentemente, mas não menos importante, POETA).
Obrigado por me acrescentar mais estes conhecimentos.
O que seria de nós sem amigos para nos encher de elogios. Ainda mais quando são sinceros e de coração, como percebo que são os seus, sempre. Obrigadíssimo pelas palavras, pela companhia e pelos momentos que me apoiou durante as "dificuldades" dessa minha nova fase. Abraços sinceros!
ExcluirBem, Silvagner, parece-me que a peregrinação não gerou um poeta, mas revelou o poeta que há no Silvagner a ele próprio! Li todos os poemas e gostei muito de todos eles. Aliás, a sua veia poética reve-se sempre em tudo o que escreves, não é?!
ResponderExcluirSobre a Galícia, tens toda arazão de te teres encantado por aquelas paragens. Aquela região tem mesmo um "quê" de mística, de mágica, de um mistério bucólico que nos fascina mesmo. E o interessante é que a Galícia e o norte de Portugal parecem não ter fronteiras. Diferente sensação temos da passagem do Algarve para a Espanha...ali sente-se a passagem vincadamente. Até mesmo a vegetação e a paisagem em si parecem anunciar que avançamos para territórios distintos...a aridez predomina por ali. A mim, encanta-me o Norte e sua aura de natureza exuberante.
Vou continuar a viajar pelos teus ricos textos! Parabéns! Abriste uma agência de viagens virtual, que até dispensa fotos (embora também as tenha de grande qualidade).
Grande abraço!