sábado, 31 de dezembro de 2011

Meia noite em Paris

Não teve jeito, neste mês de dezembro não deu para manter a média de três posts mensais, como tem sido a prática desde o longínquo outubro de 2011, quando essa história aqui começou. Com artigos do doutorado para escrever, com preparativos e viagens de fim de ano, faltaram-me tempo e inspiração para atualizar este espaço que foi, nos últimos meses, o local de prazeroso compartilhamento das emoções que marcaram minha experiência de instalação em Coimbra.

Neste último dia de 2011, faço apenas um agradecimento coletivo pela atenção e pelos gentis comentários e visitas a este modesto blog. Em 2012, espero contar com a digníssima companhia de todos que até aqui prestigiaram essas minhas mal traçadas linhas.

Aproveito também para dizer que estou em Paris. E não passarei o réveillon em frente à Torre Eiffel! Ficarei muito bem acompanhado, e sem qualquer tipo de esnobismo, no quarto do hotel. Passei do tempo de estar no meio de uma multidão de anônimos (ainda mais com chuva e frio), apenas para dizer que "I was there".

Com um pouco mais de idade, começo a dar valor a outras coisas. O simbolismo da data e do local não competem com o prazer de estar na companhia tranquila e agradável de entes queridos. Com eles, qualquer quarto de hotel, ainda mais quando se pode também ter a oportunidade de comer queijos e doces franceses e tomar champagne (com toda a pompa e sabor que esse nome confere a um espumante), se tornam o melhor lugar do mundo para uma virada de ano.

É isso... já acabou... o post e o ano. Agora é hora de recomeçar tudo de novo. Novos planos, promessas, dietas... tudo que (provavelmente) não funcionará nem dará certo.

Jogar tudo isso para o futuro (ano) - ou para o passado, como genialmente nos mostra Woody Allen com seu "Meia noite em Paris - é comum, tranquilizador e, de certa forma, nos liberta um pouco da herança de Sísifo, o humano eternamento condenado pelos deuses a rolar ladeira acima uma enorme pedra que, ao atingir o cume da montanha, rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida, tendo que (re)começar assim todo o processo.

                                           Sísifo, por Tiziano, 1549.

Parte da metáfora é para nos dizer que, infelizmente, não temos a liberdade própria dos deuses (gregos). Somos rotineiramente humanos, limitados pelos dias e anos que teimam em começar e acabar. O que temos de fato é o presente, que a cada segundo se torna passado.

Mas o que nos faz sobreviver ao eterno esforço de rolar a vida pelos anos afora?

Além dos "sabores de infância", outra coisa que nessa empreitada faz a vida ficar mais leve, suportável e, por que não, feliz, é a presença (carinho, ajuda...) dos que nos amam.

Por isso é que, no dia 31 de dezembro de 2011, quando der meia noite em Paris, estarei fisicamente junto a alguns deles e espiritualmente ligado a todos que no mundo eu quero bem.

Feliz 2012!!!

domingo, 4 de dezembro de 2011

Anyway the wind blows

Imagine se o mundo fosse uma caverna, na qual as pessoas estivessem acorrentadas, imóveis e de costas para a sua única entrada. Entre elas e o exterior haveria um grande muro, sobre o qual um feixe de luz adentraria à caverna, possibilitando que as pessoas em seu interior visualizassem apenas as sombras projetadas na parede à sua frente das coisas existentes no exterior dessa caverna. Ou seja, sombras do que "realmente" haveria lá fora. O que se ouve são apenas ecos de sons igualmente exteriores. Como as pessoas nasceram e cresceram sob essa condição, o que elas vêem, portanto, são apenas reproduções imperfeitas de algo inacessível a elas. Todos acreditam que o que existe no mundo são apenas os ecos e as sombras projetadas na parede à sua frente.

A princípio não há observador externo para constatar tal situação e denunciá-la. Todos estão presos a essa condição (humana?). Ocorre que, por alguma razão, uma dessas pessoas decide e consegue, com muita dificuldade, libertar-se dos grilhões, escalar o muro a sua retaguarda e ir em direção ao exterior da caverna. Seus olhos ficam por alguns instantes ofuscados, mas logo se apercebe que existe um mundo cheio de cores, cheiros e sensações, muito diferente das opacas e distorcidas sombras projetadas na parede da caverna. Ele então decide voltar e contar o que viu a seus companheiros que permaneceram acorrentados àquela situação de escuridão. Porém, todos recusam-se a acreditar em seu relato. Alguns o ignoram, outros passam a chamá-lo de louco, outros de herege, outros até o condenam à morte, pois o que ele diz é absolutamente subversivo à "vida" que todos confortavelmente levam.

Não, esse exercício imaginativo não foi proposto por mim. Como muitos já sabem, isso é obra de um gênio: um filósofo que viveu há mais de 2400 anos, chamado Platão. Trata-se de sua famosa "alegoria da caverna", uma poderosa metáfora que pretende apresentar e denunciar uma condição humana à qual estaríamos irremediavelmente "presos". Como isso Platão propõe uma igualmente famosa dicotomia: haveria um "mundo das ideias" (imutável e verdadeiro) e um "mundo real" (das coisas sensíveis e transitórias).

Para além das implicações profundamente filosóficas dessa alegoria (que não cabem nem são pertinentes a esse momento), fiquemos apenas com o convite imaginativo feito por Platão para analisarmos nossa condição humana prisioneira de certas situações (preconceitos, crenças, ideologias, massificação cultural, discursos únicos de verdade, etc, etc) que nos impedem de ver um mundo (verdadeiro?) por outra perspectiva. Muitas vezes o que parece ser, não é! E para percebermos isso, é preciso que sejamos despertados de uma condição confortável e prisioneira perante a "realidade".

Na história do mundo (e da filosofia) existem muitos casos em que quem se atreveu a fazer isso, escalando dolorosamente o muro que o separava do exterior da caverna, e vendo um mundo de forma diferente, foi considerado louco ou mesmo executado. A figura mais emblemática e vítima dessa situação foi Sócrates, morto pelos cidadãos de Atenas, sob a alegação de corromper a mente dos mais jovens. Só para dar visual a esse post excessivamente textual, abaixo uma belíssima pintura, feita por Jacques-Louis David, em 1787, que retrata a morte de Sócrates:


Na figura, Platão está melancolicamente sentado a beira da cama e Sócrates, prestes a tomar veneno (cicuta), aponta para o céu e, em um ato de coragem, prefere a morte ao exílio.

A metáfora proposta por Platão é tão poderosa que perpassa toda a história humana, sendo recriada nas mais diferentes manifestações artísticas, desde a pintura, literatura e, mais recentemente, o cinema e até a música. Para citar alguns exemplos: "Alice no país das maravilhas", de Lewis Carroll; e o espetacular, e mais explícito na referência à proposta de Platão,  filme "Matrix" (só o primeiro, pois as sequências são dispensáveis).

Mas o objetivo de toda essa elucubração que trago neste post é minha mais recente (e feliz) descoberta de referência à metáfora de Platão. Para desanuviar a cabeça, e de maneira absolutamente despretensiosa, fui assistir ao espetáculo "We will rock you", no West End londrino (algo similar à Broadway norteamericana). Trata-se de um musical com músicas da banda de rock "Queen". Pensei que seria uma colagem de músicas e que não haveria um enredo a (inter)ligá-las. Para minha surpresa, pude constatar um espetáculo teatral com explícita referência a Platão.

Eis a sinopse do espetáculo, retirada do site da peça (em uma tradução livre):

The time is the future, in a place that was once called Earth. Globalisation is complete. (O tempo é o futuro, em um planeta que um dia foi chamado Terra. Globalização está completa.)

Everywhere, the kids watch the same movies, wear the same fashions and think the same thoughts. It’s a safe, happy, Ga Ga world. Unless you’re a rebel. Unless you want to Rock. On Planet Mall all the musical instruments are banned. The Company Computers generate tunes and everybody downloads them. It is an age of Boy Bands and of Girl Bands. Of Boy and Girl Bands. Of Girl Bands with a couple of boys in them that look like girls anyway. Nothing is left to chance, hits are scheduled years in advance.

(Em todos os lugares, as crianças assistem aos mesmos filmes, usam a mesma moda e pensam os mesmos pensamentos. É um seguro e feliz mundo Ga Ga. A menos que você seja um rebelde. A menos que você queira Rock. No Planeta Mall, todos os instrumentos musicais são banidos. Os computadores da empresa geram músicas e todos fazem downloads delas. É uma época de "Boy Bands" e "Girl Bands". De "Boy and Girls Bands". De "Girl Bands" com alguns garotos que parecem garotas. Nada é deixado ao acaso, sucessos são programados com anos de antecedência).

Enfim, não seria possível relatar aqui a beleza que o musical é desde sua concepção à sua realização. As músicas encaixam-se perfeitamente à estória criada. E nessa estória, há um herói (não por acaso chamado de Galileo). Herói porque ele é aquele que se aventura a ir além da caverna, escalar o muro e ver que "lá fora" há um mundo além daquele pré-pensado e propositalmente criado por pessoas que dominam as demais. E que a "verdade", no caso da peça, está na inspiração e na sensibilidade de artistas ("de verdade"), que tocam instrumentos ("de verdade") e que expressam emoções ("de verdade").

A repetição e destaque do termo "verdade" não são irrelevantes. Afinal, apesar de todas as significações desse termo, essa é a busca de filósofos e, por que também não, de artistas e poetas. Basta lembrar Cazuza, com sua música "O poeta não morreu". Aliás, proponho a (re)leitura da letra dessa música com os olhos agora iluminados pelas ideias trazidas neste post:

O poeta está vivo
(Cazuza)

Baby, compra o jornal
E vem ver o sol
Ele continua a brilhar
Apesar de tanta barbaridade...

Baby escuta o galo cantar
A aurora dos nossos tempos
Não é hora de chorar
Amanheceu o pensamento...

O poeta está vivo
Com seus moinhos de vento
A impulsionar
A grande roda da história...

Mas quem tem coragem de ouvir
Amanheceu o pensamento
Que vai mudar o mundo
Com seus moinhos de vento...

Se você não pode ser forte
Seja pelo menos humana
Quando o papa e seu rebanho chegar
Não tenha pena...

Todo mundo é parecido
Quando sente dor
Mas nú e só ao meio dia
Só quem está pronto pro amor...

O poeta não morreu
Foi ao inferno e voltou
Conheceu os jardins do Éden
E nos contou...

Por falar em canções, o clímax do espetáculo não ocorreu na música "We will rock you", mas na canção "Bohemian Rhapsody". Penso que foi essa a música que inspirou a criou o enredo da peça. Uma obra-prima de Freddie Mercury, composta em 1975 e de versos enigmáticos (uma das possibilidades de leitura também os associam à "alegoria da caverna" e à dicotomia "mundo real"/"mundo de aparências"). Elementos que se juntam a esse para tornar essa música uma obra-prima do rock são os seus acordes, que suscitam emoções variadas, e a potência e emoção da interpretação de Freddie Mercury.

É claro que, como tudo na vida, múltiplas interpretações são possíveis acerca de uma mesma obra. Ainda mais no mundo da arte. E minha leitura de "We will rock you" (e de Cazuza) pode estar por demais "filosófica".

Quem sabe não é nada disso. Quem sabe não exista essa estória de caverna e Platão estivesse completamente enganado. Quem sabe basta olharmos para trás e ver que não há muro algum, que não há corrente alguma a nos prender. Quem sabe Aristóteles é que estivesse correto, apontando para o chão e não para o céu...

De qualquer forma, em meio a tanta incerteza, fico com os últimos e singelos versos de Bohemian Rhapsody, que tão poeticamente encerraram o espetáculo e que tiveram um profundo significado para mim naquele momento. Afinal, quer estejamos prisioneiros em uma caverna escura (com fantasmas a nos apavorar de quando em vez), quer estejamos em planícies verdejantes e ensolaradas: "Anyway the wind blows"...


p.s. 1) Segue abaixo uma interpretação primorosa de Bohemian Rhapsody e, logo após, um trailer do espetáculo "We will rock you".


p.s. 2) Só para aqueles não próximos à Língua Inglesa e que porventura não tenham entendido o título desde post. Nada de mais singelo: "De qualquer forma o vento sopra"


 

domingo, 20 de novembro de 2011

Éramos quatro

Era uma vez quatro amigos. Eles se conheceram há pouco tempo. De idades (e vivências) variadas, vieram de diferentes lugares do Brasil e estão agora em Portugal. A história deles começou no início deste ano, quando ainda nem se conheciam. Todos se candidataram ao processo seletivo do doutoramento em Direito da Universidade de Coimbra e foram aprovados. Ainda no Brasil, viveram a ansiedade e sentiram na pele as dificuldades (burocráticas e emocionais) dessa, então, futura mudança.

Um deles, o qual conheço bem de perto, sentiu suas pernas tremerem e seu coração quase sair pela boca quando viu seu nome entre os aprovados. Quanto aos demais, não posso dizer o mesmo, mas se levando em consideração a mudança que isso implicaria em suas vidas, algo de parecido deve ter-lhes acontecido.

Por razões que só o destino conhece, a relação entre eles começou logo nos primeiros dias de convivência no doutoramento. Dentre mais ou menos sessenta doutorandos, eles logo se aproximaram e começaram uma incipiente amizade. A vida às vezes faz acionar um magnetismo que atrai aqueles que, por razões igualmente desconhecidas, deveriam de fato se aproximar.

De onde brota uma amizade? Sem que haja qualquer necessidade de convivência por razões de toda ordem (familiar, profissional,...), vemo-nos com uma imensa e satisfatória vontade de estar juntos e (con)viver momentos felizes e, por que não, também tristes com essas pessoas que, assim como tantos outros rótulos nessa vida, recebem a vulgar denominação de "amigos". Conheço uma pessoa que fala que "os amigos são os eternos namorados". Sempre achei essa frase sensacional, pois revela uma possibilidade de se compartilhar uma modalidade de amor que prescinde de sexo, cobranças, compromissos... Enfim, um amor gratuito, que se mantém pelo simples fato de se querer bem alguém, de se estar (e ficar) feliz com a sua presença. É certo que muitos exigem da amizade iguais retribuições que os namorados (por convenção) se exigem. Coisas que a psicanálise resolveria bem! Mas amizade boa, verdadeira, é gratuita. Existe porque o que une os amigos (verdadeiros) é apenas a vontade e o inexplicável magnetismo que a vida faz acontecer.

Mas voltando aos quatro amigos desta história, importante e interessante notar que eles poderiam não ter se aproximado. Aferir o porquê isso se deu vai além de qualquer ciência. Não é nessa área que isso se opera. Em pouco tempo, eles estavam se comunicando por celular (ops, telemóvel) e marcando encontros, jantares e viagens. Com mais alguns dias de convivência, criou-se aquilo que Lygia Fagundes Telles falava sobre o que acontece com os amantes (com o tempo vejo aquela frase que citei quase que como uma profecia): logo havia entre eles algo como que uma "estrutura da bolha de sabão". Algo frágil, sutil, delicado, que os envolvia, protegia e, ao mesmo tempo, não os impedia de serem livres para serem o que quer que desejassem. Se algo desse errado nessa empreitada, quando estivessem juntos, essa "estrutura da bolha de sabão" os protegeria como se fosse aço. Mas por inconsequência ou desídia, um leve toque os deixaria novamente expostos à radiação de uma vida sulfúrica e árida. Ciência realmente não é um campo de compreensão que se aplica aqui...

Essa estrutura cria igualmente uma cumplicidade que dá gosto de ver. Em pouquíssimo tempo passaram a falar de coisas que lhes eram igualmente engraçadas, (des)interessantes e banais. Estavam rindo de assuntos e pessoas de forma deliciosamente irresponsável. Passaram a se sentir íntimos e à vontade para, inclusive, ficar em silêncio entre eles. Ah, eu, particularmente, acho isso uma das melhores coisas em uma amizade verdadeira: a possibilidade de se ficar em silêncio perto de outra pessoa. Sem precisar se explicar e nem puxar qualquer assunto. Um silêncio que não constrange, mas conforta. Quando isso ocorre, a cumplicidade passa então a ser plena.

A história desses quatro amigos tem apenas um mês e meio. Já ouvi dizer que há amizades de uma vida inteira. Não duvido, pois conquistei amigos que tenho certeza absoluta que me acompanharão por toda a minha vida. Para esses quatro jovens, desejo igual sorte.

E o melhor de tudo: o que os une não exclui nem limita nada. É uma relação constantemente aberta, pronta para se tornar uma nova história. Quem sabe, daqui a um tempo eles contem para novos amigos que durante o doutorado "éramos seis", sete, dez... Afinal, o que todos nós desejamos dizer sempre (com peito aberto e mãos para cima a acompanhar o refrão) é "eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar".

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Caramelos e sabores de infância

Em que será que pensava aquela senhora a jogar milho aos pombos na Praça da República? Avistei-a de longe e pude perceber em seu rosto um olhar distante e nostálgico. Era um fim tarde frio e com céu de nuvens cor de chumbo. Estranhamente no ar havia também o peso desse metal. Uma sensação de que a chuva estava prestes a desatar do céu e acabar com aquela névoa que rodeava a copa das árvores que circundam a principal praça aqui de Coimbra. Essa cena austera e peculiar me levou a parar e sentar em um banco próximo àquela senhora.

De onde eu estava, sem que eu a deixasse perceber que a fitava, constatei sua idade muito avançada pelos cabelos bem branquinhos e por sua pele, excessivamente vincada pelos efeitos dos anos. Vestia um tipo de casaco brocado e uma saia até o joelho. Os tornozelos inchados saiam de uns sapatos sem qualquer tipo de adorno ou enfeites. Cumpriam apenas a função de calçá-la. Desse mesmo modo como aparentava e se vestia, é possível encontrar outras senhoras assim aqui em Coimbra e em Portugal. Uma cidade e um país velhos, que sentem o peso de existirem por tanto tempo. Mas, pelos motivos que descrevi, aquela senhora, com um pequeno saco de milho na mão, despertou o meu interesse e a minha sensibilidade para refletir sobre o tempo.

Sua vida, naqueles instantes, passou a me interessar. Será que teve muitos filhos? Dava-se bem com eles (ou eles com ela)? Perdeu algum deles? Aquele olhar era mesmo de nostalgia (resignação), lembrando-se de tanta coisa (boa e ruim) vivida? Como será chegar a essa idade e não se ter mais todo o tempo do mundo pela frente, como é comum na mocidade?

Antes mesmo que eu parasse de fazer indagações inúteis e silenciosas à minha mente, ela se levantou com dificuldades, amassou o saco vazio de milho e, despertando-me do transe, o jogou sem qualquer delicadeza na lixeira. Foi-se embora vagarosamente, deixando-me para trás com minhas divagações de fim de tarde. Eu iria em seguida de ônibus para casa, mas preferi ir a pé. A despeito dos minutos que iria gastar caminhando, precisava desse tempo e desse esforço físico para me desfazer daquele estado reflexivo.

Passados alguns dias, em conversa com meu amigo Ricardo, ele me falou de algo que me fez (re)pensar aquela tarde. Disse que sua mãe, volta e meia, alertava-o sobre um sentimento muito comum em todos nós, que é o de achar que certos gostos (cheiros/sabores/impressões...) do passado têm mais "encanto" que aqueles vivenciados no presente. Ela chamava esse fenômeno de "sabor de infância".

Depois percebi que realmente isso já aconteceu comigo e já ouvi muita gente dizer que morria de saudades do "cheirinho do bolinho da vovó", do "sabor delicioso de certo doce que só fulano fazia", do "tempo em que se podia fazer isso ou aquilo"... A propósito, acho que Woody Allen se inspirou nessa estória do "sabor de infância" para rodar seu novo filme "Meia noite em Paris".

Depois da conversa, pensei: quantos "sabores de infância" fazem-nos nostálgicos e nos impedem de desfrutar sensações e experiências novas, comparando-as sempre com os invencíveis e mágicos "sabores de infância". Resultado: frustração a se agregar no mar de outras tantas em que vivemos. Arrisco dizer que passado é bom até certa medida, e viver nele não é uma boa opção. O futuro tem que ser melhor, e essa fala (falível) deve ser sempre a do presente.

Mesmo os portugueses, que já dividiram o mundo (ao meio) com os espanhóis, tentam não mais viver do passado. Como todos sabem, eles estão numa crise sem tamanho. Tenho percebido que a vida não está nada fácil para quem vive por aqui. Outro dia, numa quitanda de bairro, ouvi dois senhores se cumprimentando. Um perguntou para o outro: "E aí, está bem?". Sendo-lhe respondido: "Ora, tem que estar!". Levando-se em conta a atual situação portuguesa, achei a resposta, metaforicamente falando, precisa e acertada!

Outro fato que se relaciona com essas reflexões sobre o tempo aconteceu na minha entrevista no serviço de imigração português para a obtenção do visto de residência. O funcionário, por incrível que pareça, foi muito simpático e atencioso comigo. Certa hora perguntei se com o cartão de residente que iria receber eu poderia ir a outro país da comunidade européia. Disse que sim, mas como não sou cidadão europeu, devo estar também com o passaporte. Em tom descontraído, disse que com ambos os documentos eu poderia tanto ir ao Brasil como ali na Espanha comprar caramelos.

Achei aquela comparação inusitada e perguntei se os caramelos da Espanha eram realmente bons. Eis sua resposta: "Devem ser sim, pois na época da ditadura aqui em Portugal, os portugueses, quando os guardas da fronteira descuidavam, iam à Espanha para comprar caramelos".

Indo para casa, no ônibus, pensei: se essa estória for verdade, o caramelo em si não deve ter sido motivo para se arriscar tanto. Talvez o que tornava o sabor do caramelo um "sabor de infância", suficientemente forte para aqueles que se arriscavam a atravessar a fronteira de um país em tempos de ditadura, teria sido a lembrança de um tempo em que se era livre e se tinha direitos, inclusive o de comer inofensivos caramelos.

O que as pessoas não fazem para adoçar a vida. Mas pensando bem, se não for assim, que gosto tem...


p.s. Acho que aquela senhora aproveitava o momento de jogar milho aos pombos para pensar nos "sabores de infância" de sua longa vida. Para ela, o futuro já não deve interessar tanto e o presente deve ser vagaroso como era o seu andar naquela tarde. De qualque forma, o que posso desejar é que sua vida tenha sido doce como os caramelos da Espanha.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Um canto pra chamar de meu

Caso desejar, à direita há um player com uma canção ("A casa é sua"), que sugiro para acompanhar a leitura deste post, ou ao final dele, onde existe a transcrição de sua letra. Basta clicar no play assim que quiser ouvi-la.

Como parte dos primeiros desafios de me instalar em uma cidade como Coimbra, fiquei de relatar como se deu a minha busca por um apartamento para começar minha vida por aqui. Um estudante tentando encontrar um lugar para morar em uma cidade universitária: não sei de que maneira isso poderia se tornar um assunto de interesse geral (e não apenas de amigos próximos e familiares).

Mas essa preocupação inicial me motiva agora a tentar esgarçar essa experiência, ampliá-la para atingir também aquele que como você perde seu raros minutos a ler essas linhas de um relato amador. Mera pretensão, mas aceito o desafio de quem igualmente aceitar o convite de acompanhar essa banal experiência. Fechado? Vamos então à ordenha das pedras!

Talvez um bom começo seja pela força de um verbo cujo sentido é propriamente humano: morar. À exceção de tribos nômades (do deserto?), que acredito ser cada dia mais raro nesse planeta já pré-culturalmente-programado a que fomos lançados, todo mundo precisa de um canto pra chamar de seu, ter uma casa, um ambiente qualquer para viver.

Desde que nossos ancestrais saíram à procura de uma caverna para ter ali relativo conforto; para fugir das intempéries naturais como o frio, o calor ou a chuva; para procriar e abrigar sua prole indefesa; e nós, mais recentemente, para nos proteger de fenômenos sociais como a violência e a criminalidade; os motivos são inúmeros (e não param de crescer) para que tenhamos um lugar fixo (e emparedado) para viver.

E o meu motivo, nesse atual momento, como todos bem sabem, foi o de encontrar esse lugar aqui em Coimbra. Até então, era na casa do papai e da mamãe. Não me envergonho disso. Foram anos ótimos e felizes ao lado deles. Mas no Brasil há um famoso ditado que diz: "quem casa quer casa". Eu (ainda) não me casei, mas bem que poderia haver outro semelhante : "quem sai de sua casa para estudar (em Coimbra) quer casa".

E esse foi meu desejo durante os primeiros dias desde minha chegada. Não, não fiquei na rua até que isso acontecesse. Prudentemente, reservei alguns dias em um hotel para, nesse breve intervalo, ver in locu as possibilidades de estadia por aqui. Acompanhe comigo as minhas dificuldades.

Quando se atravessa um oceano para estar em um local onde se pretende morar, as coisas não tão fáceis quanto uma simples, mas não menos interessante, viagem de turismo. Tudo começa com um limite: os tradicionais dois volumes (malas) com 32 kilos cada. Para passar 10 ou 20 dias, mais do que suficiente (exceto para a crescente parcela de "muambeiros de luxo" vindo da Flórida. Sim, eu vi pessoalmente que eles existem aos montes). Mas para estar 1 ou 2 anos, não! O que levar nesses dois singelos volumes. Certamente todos os meus bens materiais móveis adquiridos ao longo de 36 anos não caberiam ali, apesar da vontade (e tentativa). Olhava desolado o que não coube ou não foi escolhido para entrar na mala. Mas apelei para o desapego!

Não tenho muita coisa, mas façamos um exercício (lembrem-se, vim para morar): roupas (incluindo casacos, calças, camisas, terno, etc), sapatos e tênis, livros, alguma roupa de cama e banho, notebook, arroz com feijão (não, estou brincando), etc, etc... Enfim, basta dizer que utilizei o limite permitido de bagagem!

E nesses primeiros dias aqui em Coimbra, tudo isso ficou dentro da mala, dentro do hotel. Não dava para abrir e colocar tudo no guarda-roupas, na pia do banheiro, ou seja, instalar-me. Com exceção das coisas que estrategicamente coloquei na parte de cima da mala, tudo ficou lá, enquanto eu batia perna tentando alugar um canto. Em alguns momentos, senti-me como meus pertences, espremido e sem ainda poder respirar nessa nova terra.

Coimbra, como todos sabem, é uma cidade universitária. Pela milenar lei da oferta e da procura, onde há muita gente querendo algo, os preços vão para as alturas. Ainda mais quando se chega nesse tipo de cidade logo após o início do ano letivo, que foi meu caso. Não sobrou muita coisa. Perguntando aqui, pedindo indicação ali, vendo os classificados acolá, fui tentando achar um lugar digno e limpo para eu ficar. Esses adjetivos não estão aí à toa, pois vi alguns lugares em que eles não se aplicavam.

De todo esse processo, aqui bem resumido, escolho relatar/compartilhar apenas três momentos pitorescos dessa empreitada. Duas tentativas frustradas e a, já adianto, feliz escolha de onde agora estou.

Bem, as duas tentativas (frustradas) foram frutos de anúncios de classificado de jornal. Ah, um detalhe do linguajar imobiliário português que tive que me acostumar: os apartamentos e as casas para alugar/vender são classificados de acordo com o número de quartos (ou dormitórios, como se diz em São Paulo). Até aí, tudo bem, mas há uma codificação que no início eu estranhei. Via anúncios como este: "Alugo T1 em excelente estado. 350Euros". Pois é, descobri depois que esse número se refere ao número de quartos existentes. Nesse sistema há, portanto, o T0 (sim, sem quarto, tudo no mesmo ambiente, como a nossa famosa kitnet), o T1 (um quarto em ambiente separado), o T2 (dois quartos) e por aí vai. Só achei estranho encontrar anúncios alugando um T1 + 1. Deve ser ignorância minha, mas por que não chamar de T2?

Bem, quando se olha anúncios de classificados, cada palavra adquiri um significado muito forte. Como o anúncio é vendido por caracteres, as palavras são estrategicamente escolhidas pelo anunciante para convencer o leitor a se interessar pelo "produto" anunciado. O problema é que essas palavras muitas vezes não refletem o real estado das coisas. E eu fui, inevitavelmente, vítima da má-fé de alguns anúncios.

O primeiro anúncio que me interessou foi de um T1 "impecável" na Rua do Brasil. Não preciso falar mais nada: na situação em que eu estava, "impecável" e "Brasil" foram muito impactantes. Mas, infelizmente, foi só decepção. Ao ligar para o senhor que anunciava, um primeiro obstáculo: eu não entendia quase nada que ele falava (aquele lance do português de Portugal/do Brasil). Com muito esforço, consegui marcar um encontro para conhecer o lugar. Onde? Na Rua do Brasil: uma das ruas mais tumultuadas e, desculpem a palavra, esculhambadas da cidade. Ai, tadinho do meu Brasil, até aqui... Mas..., já estava ali mesmo!

Então veio o tal senhor. O estereótipo que todos (a maioria, vai...) tem de um português: um senhor com bigodes enormes de fazer volta na ponta. Só faltou ele dizer que tinha uma padaria. Fui com ele ver o tal T1. Lembra que uma das palavras do anúncio que me chamou atenção foi "impecável". Decompondo a palavra: que não peca em nada. Se for assim, aquele apartamento era um herege sem perdão. Falei que iria pensar...e nunca mais vi o senhor Manuel da padaria!

O outro anúncio foi já mais para o final das tentativas. A paciência já estava acabando e fui ver no desespero mesmo. Outro T1, e nem tinha palavras impactantes no anúncio. A essa altura, sendo limpo já estaria ótimo. O que eu queria era sair daquele hotel e me instalar.

O dono da imobiliária veio me pegar no hotel. Um simpático senhor, agora de barba e bigodes aparados e com um português compreensível. Fomos conversando e, em determinada hora, comecei a achar estranho, pois a cidade estava ficando para trás. Chegamos então ao local, bem ermo e sem nenhum comércio nas imediações. O que havia de mais movimentado por perto era um ponto de ônibus, que nem era tão perto assim. Pensei de novo, já estou aqui mesmo...

O prédio por fora nem era de assustar, mas começando a subir as escadas (escuras) comecei a ficar com "medo". Chegamos ao terceiro andar. A dona morava no apartamento de frente. Um senhora falante que foi logo abrindo a porta e dizendo que naquele apartamento moravam duas brasileiras com as quais ela fez muita amizade. Disse que foi como uma segunda mãe para elas. Mas deixou claro que elas eram exceção à sua opinião sobre as brasileiras que vêm morar em Portugal. Segundo ela, a maioria vem para se prostituir e ela prefere, por isso, alugar os apartamentos para rapazes. Eu, pasmo, ouvindo...e ela continuou...evitamos, pois, quando se vê, elas estão com nossos maridos! Achei tudo aquilo de uma maldade e de um preconceito que nem deu vontade de continuar a ver o apartamento. E, pelo que consigo me lembrar, não atendia ao único requisito que ainda fazia questão. O apartamento era muito sujo, daquele tipo que tem crosta de gordura no fogão. Despedi-me brevemente e falei que iria pensar. Se eu pudesse, iria trazer uns amigos que conheço para morar lá. Só pra ela correr o risco de também ficar sem o marido e largar de ser preconceituosa. Pronto, falei!!!

Nesse dia minha moral ficou baixa. Pedi ao senhor da imobiliária que me deixasse próximo a um shopping movimentado e saí andando, à procura de placas de aluguel nas sacadas dos apartamentos da região. Depois de andar por quase uma hora e não achar nada, me senti desolado como a Janete, best friend da Valéria, cantando aquelas músicas tristes ao longo do metrô. Ah, a analogia é ruim, mas o quadro humorístico é muito bom e, lembrando disso naquela hora, até me alegrei de novo. Voltei para o hotel e reiniciei todo o processo!

Para não enfadar, chego logo ao momento em que achei o meu canto aqui em Coimbra. Por indicação de um amigo do doutorado (chama-se Ricardo. Ele e Cláudia, citada no segundo post, estão se tornando meus grandes amigos aqui), entro em contato com outra imobiliária. Ele tinha a disposição um T0 (que também é chamado de studio), em um prédio em cima de um grande shopping daqui, chamado Dolce Vita (que além de tudo, tem até um supermercado). Um lugar ótimo e perto de ponto de ônibus (ops, autocarro), ponto de táxi, de academia de ginástica (aqui ginásio), livraria, estádio de futebol, cafés, restaurantes... Faltava só conferir o apartamento pessoalmente.

Começou bem, portaria (com porteiro), elevador, tudo muito limpo, eu nem estava acreditando. Quando chego no apartamento, pensei: é esse! Pequeno, simples, mas tudo novo, limpo e funcional. Em um mesmo ambiente: cama (embutida), armários, cozinha (equipada com geladeira, fogão e microondas), sala com sofá e tapete. Em outro, o banheiro (limpíssimo e novo). Perguntei, posso me mudar hoje?

No outro dia minhas coisas já tinham saído de dentro da mala e com elas comecei a respirar aliviado. Enfim, tinha a minha casa. Agora "só falta ela ser um lar", como diz a música do poeta Arnaldo Antunes, que embala a leitura desse post. Tento fazer isso todos os dias. Ainda não tenho condições de receber amigos para jantares e trazer vida e animação a ela (limitações temporárias de pratos, talheres, copos...), mas assim que tiver, a casa deixará de ser só MINHA é passará também a ser SUA!!!

Afinal, algo que diferencia nossas casas das distantes cavernas de nossos ancestrais é a possibilidade de partilhá-la com aqueles que gostamos e amamos. Pois, como também diz a letra da música, de nada adianta cama, sofá, parede, janela, teto, banheiro, cachorro, relógio, tapete, cozinha, sem que haja pessoas (amadas e queridas) para alegrar e dar poesia a essas coisas que, por si só, não bastam!


p.s. Na verdade, este é um canto que eu gostaria para mim:

A casa é sua
Arnaldo Antunes

Não me falta cadeira
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar

Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar

Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar

Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora

A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio

Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar

Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar

Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar

Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora

A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio

domingo, 23 de outubro de 2011

Sobre palmeiras, sabiás e morcegos

Kennst du das Land, wo die Zitronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?

Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möcht ich... ziehn.

[Conheces o país onde florescem as laranjeiras?
Ardem na escura fronde os frutos de ouro...
Conhecê-lo? Para lá, para lá quisera eu ir!]


             Goethe (tradução de Manuel Bandeira)



Terminei o último post com a mais-que-famosa Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Não que agora eu me sinta um exilado. Longe disso, estou aqui por vontade e com muito gosto. Mas aqui, longe de casa e de todos que eu amo, senti a poesia do poeta maranhense "fazer folia em minha vida". Uma saudade boa, de quem passa a ter um olhar distante e afetuoso de sua terra natal.

Acredito que esse seja um sentimento universal. O lugar onde nascemos é e deve ser "cantado" em verso e prosa, pois é para lá que sempre desejaremos voltar. Ele nos constitui. Passa a nos pertencer, tornando-se o lugar em que um dia seremos (mesmo que idealisticamente) felizes. Atento a isso, Golçalves Dias escolheu, como epígrafe de sua Canção do Exílio, esses versos de Goethe, o maior poeta alemão, retirado do romance Os Anos de Aprendizagem de Wilhem Meister.

Mas o que me fez citar Gonçalves Dias? Coloquei essa questão no último post, mas - apesar da evidente identificação com o conteúdo do poema - a pergunta ficou sem resposta. Pois descobri que esse poeta também saiu um dia de sua terra natal para estar aqui, a estudar nessas mesmas salas e a frequentar essas igrejas e bibliotecas que agora percorro embasbacado de tanto deslumbre.

Isso ocorreu entre os anos de 1840 e 1845. Graduou-se em Direito por essa mesma faculdade que agora ingresso. Para qualquer acadêmico apreciador de História e Literatura, doutorar-se em uma instituição como essa é um sonho!

Certamente à época de Golçalves Dias e de Goethe, distanciar-se de sua terra para realizar estudos não devia ser um empreendimento fácil (e eu reclamando do meu vôo da TAP de breves 11 horas. Imaginem como deveria ser em 1840!). Também naquela época não havia internet, skype e telefone para amenizar saudades. Apenas o papel e a escrita. E com esses parcos recursos, Gonçalves Dias, em 1843, aqui em Coimbra, fez aquele belíssimo poema, que se tornou um dos maiores símbolos de afirmação da identidade de um país ainda em construção.

Hoje, palmeiras e sabiás podem ser perfeitamente metáforas de tudo que em meu país tem mais: calor, amor, sabor, hospitalidade, tolerância, praias, florestas, bichos, música...

Certamente nunca terei a notoriedade de Gonçalves Dias, mas estudar na mesma universidade que ele estudou há mais de 240 anos faz sentir-me cheio de orgulho. Que o meu caminhar aqui seja de crescimento e, quando eu voltar à minha terra cheia de palmeiras e sabiás, possa eu também fazer ela crescer e se tornar um lugar melhor para se viver. Ok, as coisas não são tão românticas assim, os problemas são vários e tudo parece impossível de se resolver. Mas eu QUERO fazer a diferença, pelo menos no que me couber como cidadão, filho, irmão, amigo, vizinho, policial, professor, chefe, subordinado...

Então, voltando à visita guiada que nos foi proporcionada após a aula inaugural, acredito que três lugares merecem destaque e valem a pena eu compartilhar aqui.

Após a aula, fomos "entregues" a uma mulher muito simpática que foi nossa guia turística na visita aos espaços históricos da Faculdade de Direito. De início, uma coisa que gostei de saber é que nos primórdios da Universidade de Coimbra, onde hoje é a Faculdade de Direito, havia uma palácio real e durante muito tempo ele funcionou juntamente com a universidade. Por isso que junto à Faculdade há igrejas e tudo é tão pomposo. Isso explica também porque há, nas salas mais antigas, um tipo de "camarote" ao alto do lado contrário à lousa. A guia nos falou que esses espaços eram destinados à fiscalização das aulas, realizadas esporadicamente pelo rei ou pela rainha. Pois é, também fiquei chocado!

Como eu havia dito, três são os pontos altos de qualquer visita a essa parte da Universidade: a Biblioteca Joanina, a Capela de São Miguel e a Sala dos Capelos. Vamos lá!

A Biblioteca Joanina (o nome faz alusão a D. João V, o Magnânimo, o rei mecenas em cujo reinado essa biblioteca foi concluída) integra o conjunto arquitetônico daquela praça principal da Faculdade. Seu exterior é lindo, como abaixo se vê.



Mas a fachada em nada se compara com o seu interior. Ao entrarmos, ficamos meio sem fôlego, pelos detalhes (a maioria em OURO) e pelos móveis e estantes (em madeira NOBRE). Tudo, é claro, proveniente do BRASIL, que naquela época se encontrava no auge da exploração e do extrativismo realizados por uma certa METRÓPOLE. Isso sem falar nos afrescos e pinturas que integram a biblioteca. Além, obviamente, dos livros: um acervo de obras raríssimas, como uma das primeiras edições dos Lusíadas, de Camões. Ah, é possível consultar todo o acervo, com muitos dos livros em latim. Para isso, é claro,você precisa justificar a consulta e utilizar luvas e apetrechos especiais.

As fotos abaixo dão uma ideia, mas nunca a sensação de vê-la em cores, ouro e madeira. O fato de tudo ter vindo do Brasil torna essa sensação estranha, misto de admiração pelo belo e de repúdio por um passado tão inglorioso de nosso país.






Mas o mais inusitado (e confesso que fiquei inicialmente indignado) foi o que a guia nos informou em meio à sua exposição. Certa hora ela nos fez a seguinte pergunta: o que é indesejado e perigoso para uma biblioteca? Pensei várias coisas: fogo, umidade, gente chata conversando alto...

Então ela própria respondeu: insetos, principalmente traças e cupim. Ok, isso é realmente terrível para os livros e a madeira. Entretanto, o método que eles utilizam até hoje, pasmem, é o seguinte: para se combater esses insetos, criamos MORCEGOS aqui dentro da biblioteca. Pensei a princípio que era uma piada, mas não foi.

Segundo ela, os morcegos ficam no alto, atrás das estantes. Por sua natureza, saem apenas à noite, quando comem os insetos. Simples assim! Mas, lembrando do que os morcegos faziam nas paredes da minha casa, logo pensei naquilo que vocês certamente estão pensando. Mas antes de eu perguntar como eles fazem com isso, ela já foi logo nos falando que todos os dias, no início da noite, eles cobrem todas as mesas e cadeiras com um pano (e mostrou o pano) para que as "coisas" não as sujem. Tudo bem que ao tempo de Cabral, D. João V e companhia não houvesse métodos mais eficientes e menos, humm, sujos de combater insetos. Mas hoje?

Depois pensei bem, ah vai, é um método ecologicamente correto e, afinal, estamos em Coimbra. Manter as tradições é a sua marca. Mas se eu tiver que consultar algum livro de lá eu não sento naquelas cadeiras não!!

Após isso fomos a um andar abaixo da biblioteca. Lá há um local com mais livros e onde são feitos reparos e coisas dessa natureza. Um espécie de depósito, mas tudo muito organizado. Mas a surpresa maior foi quando descemos mais um andar. Ela nos apresentou o local onde havia uma Prisão Acadêmica. Sim, naquela época os alunos iam em cana por alguns "delitos". Ficamos curiosíssimos com isso e perguntamos por quais motivos os alunos iam presos. Foi-nos informado que geralmente por faltas e por destruir materiais e livros da universidade. Além disso, era uma espécie de prisão exclusiva para onde eram mandados os integrantes da comunidade acadêmica. Por sorte nossa, não há mais prisões e a cadeia foi desativada há muito tempo! Para quem desejar, um pequeno vídeo com explicações e imagens da inusitada prisão: Prisão Acadêmica de Coimbra

Na sequência fomos para a Capela de São Miguel. Fica localizada também no conjunto que forma a praça. Seu interior é um primor. As paredes são revestidas de azulejos portugueses. O pé direito é bem alto e o altar é belíssimo. Mas o que chama a atenção mesmo é o IMENSO órgão aposto na parede. Pelo que entendi, o órgão não foi feito para aquela capela, que tem dimensões diminutas. Caberia melhor em uma catedral. Mas por megalomania de um rei, foi determinada a sua afixação lá. Olha, o órgão é lindo, acho que o mais belo que já vi, mas, mal comparando, é como colocar um peru para servir em um pires. Mas no final das contas, até que deu um charme especial à capela.



E, para terminar a visita, fomos à famosa e ultratradicional "Sala dos Capelos". A sala mais nobre e prestigiada de toda a universidade, onde, além dos grandes eventos diplomáticos, acontecem as defesas de tese do doutoramento. A entrega de títulos de doutor honoris causa também acontecem aqui. Foi nessa sala que nosso ex-presidente recebeu esse título. Ok, nem tudo é perfeito em Coimbra!

Nessa sala acontecem não apenas as defesas de doutorado em Direito, mas de toda a Universidade de Coimbra. Esse momento parece ser um acontecimento por aqui, cheio de cerimonias e simbolismos. O cenário é mais ou menos o seguinte: há um júri, composto por uns cinco doutores, todos vestindo um traje de capa preta (similar ao dos alunos) e com chapéus (os capelos, que dá nome à sala e é símbolo da sapiência). Há também um tipo de trono (sim, acho que já foi trono de rei mesmo), onde fica sentado o Magnífico Reitor da Universidade, igualmente paramentado e todo de preto. O ambiente é (propositalmente) intimidador!!



A visita ocorreu por um corredor, ao alto, que circunda e dá visão a toda a sala. No momento de nossa visita estava ocorrendo uma defesa. A coitada da doutoranda estava como que num banco dos réus, isolada no centro da sala e sentada de frente para a banca de defesa (o júri). A sala é muito alta e não há muita iluminação. Na mesa onde ela estava sentada havia um abajour, com uma luz fraca, o que deixava o clima ainda mais sinistro. A guia fez questão de ressaltar uma coisa: "notem que o júri posiciona-se em um local elevado. De onde o candidato está ele fica na altura de onde estão os pés dos membros do júri, significando que ele ainda não se encontra no mesmo nível dos doutores". Que medo!!! Nem gosto de pensar nisso agora. Daqui a cinco anos será a minha vez. Comecei a rezar desde aquele dia!

Bem, é isso! Agora basta estudar (muito) e tentar aproveitar tudo por aqui. Como disse, espero voltar uma pessoa melhor para o Brasil. Mas, de qualquer forma, voltar! Certamente esse também foi o desejo de Gonçalves Dias quando por aqui esteve. Tanto que deixou isso registrado nos mais bonitos versos de seu poema:

    "Não permita Deus que eu morra,
     Sem que eu volte para lá;
     Sem que desfrute os primores
     Que não encontro por cá;
     Sem qu'inda aviste as palmeiras,
     Onde canta o Sabiá."

Pobre Gonçalves Dias, que não teve sua prece atendida e, por ironia do destino não conseguiu, em seu regresso ao Brasil, avistar palmeiras e ouvir sabiás. Morreu em 1864, em um naufrágio na costa brasileira, após voltar da Europa onde esteve para tratamento de saúde. Salvaram-se todos, exceto o poeta, que foi esquecido agonizando em seu leito e se afogou.

O céu há de ser um lugar democrático e feliz. Graciliano Ramos reservou até um pedaço dele, creio de preás, para que descansasse sua sofrida cachorra Baleia. Para Gonçalves Dias, assim como para todos nós, o céu é a nossa verdadeira terra natal, para onde todos desejamos e iremos um dia voltar. Lá deve haver uma floresta de frondosas palmeiras, onde em dias ensolarados e de céu azul os sabiás devem voar e cantar juntamente com um coro de anjos de cabelos encaracolados... Amém!

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Onde Harry Potter canta fado


Hoje faz exatamente duas semanas que cheguei a Coimbra. No calendário dos dias comuns e de rotina, um curto intervalo que separa duas quartas-feiras. Mas para mim essas semanas ocorreram em uma dimensão absurdamente lenta, que os fizeram parecer meses.  Tanto coisa, tanta novidade, pessoas e costumes novos, providências burocráticas e consulares, enfim, o tempo é realmente algo relativo e vivenciado subjetivamente, apesar de exato e inexorável.

Mas voltemos ao fio da meada. Fiquei de relatar como foi a aula inaugural do doutorado. Pois bem, após estrear o meu novíssimo e lusitano ferro de passar roupas, deixando meu terno em condições de uso, preparei-me com o devido formalismo para a aula inaugural. Com exceção da farda que uso no dia-a-dia, estou acostumado a trajes mais informais. E até pensei em ir dessa forma. Parei. Refleti: estou indo para a aula inaugural do doutoramento em uma faculdade que tem 700 anos de existência! O ferro foi de fato imprescindível!!!

Modéstia a parte, fui todo elegante em direção à secular universidade. Era um dia ensolarado e os poucos metros que me separavam da Faculdade de Direito foram percorridos com orgulho e cabeça erguida. Não foi fácil chegar até aqui. Acredito que para sair será ainda mais difícil, mas vontade e perseverança não me faltarão.

A subida (sim, tudo aqui ou sobe ou desce) foi ao longo de um caminho que margeia um aqueduto, que remonta ao tempo do Império Romano (pra se ver como as coisas aqui são remotas), e que abastecia a parte alta da cidade. Lindo, como aqui em baixo se pode ver:


Chama-se Aqueduto de São Sebastião, popularmente conhecido como os Arcos do Jardim, por se localizar em frente ao Jardim Botânico da cidade.

Chego então à entrada da Faculdade de Direito. A primeira coisa com que se depara é um portal, com uma belíssima e (mais uma vez) antiquíssima porta férrea, datada de 1634, que emblematicamenta dá acesso à parte mais antiga da Universidade de Coimbra, onde se localiza também a Faculdade de Direito.

Transposto esse monumento, visualizamos uma belíssima praça, o centro histórico da Universidade e também local onde funcionava um palácio real. Vê-se inúmeros grupos de turistas a se misturar com os estudantes. Um clima bem diferente. Essa torre do relógio é um marco na cidade.



Após, obviamente, me perder dentro de um labirinto de corredores e salas, chego onde começa minha história em Coimbra. Deparo-me com algumas pessoas a aguardar em frente à sala destinada para tal. Quando entramos, enquanto tudo era preparado, tentávamos fazer contato, e logo uma mulher que sentou ao meu lado puxou assunto (chama-se Cláudia, e prevejo que seremos grandes amigos): Você é de onde? Chegou a muito tempo? E coisas assim...

Quando a mesa foi então composta, silêncio! Ao centro, uma mulher, a diretora da Faculdade de Direito. Em 700 anos de história, essa é a primeira vez que uma mulher ocupa esse cargo. Mas os avanços param por aí. Tenho descoberto que aqui o tradicional é a regra! Mudanças não são tão freqüentes. Um exemplo: “nunca antes” na história da faculdade houve um professor que não fosse português e que não tivesse tido toda sua formação acadêmica na própria Faculdade de Direito de Coimbra. Essa é apenas uma entre muitas outras coisas que estou descobrindo e que certamente descobrirei. Algumas me chocam, pelo menos por enquanto.

Outros dois professores sentaram-se ao seu lado. Quando começaram a falar, começaram os meus problemas: meu Deus, que idioma aquelas pessoas estavam falando? Pensei que a Língua Portuguesa fosse uma só e que na sua origem fosse ainda mais genuína e clara.

A primeira coisa que se descobre quando se chega a Portugal é que se justifica plenamente a diferença que vemos em computadores e programas de informática, quando há as opções: “Português de Portugal” e “Português do Brasil”?

Olha, eu juro, do que foi falado naquele dia, eu entendi apenas uns 40%. Quando Fernando Pessoa falava que “Minha pátria é a Língua Portuguesa” eu cheguei a acreditar que tinha dupla nacionalidade e que minha aventura por aqui seria tranqüila em relação ao idioma. Naquele momento foi meio desesperador, mas agora percebo que tudo é uma questão de costume e estar atendo ao sotaque carregadíssimo deles e a algumas palavras cujo sentido são diferentes ou mesmo únicos por aqui.

Bem, após o falatório, e para encerrar, um momento lúdico: a apresentação de um trio de alunos da faculdade (muito novos, com cerca de 20 anos) que tocaram e cantaram fado para os presentes. Aparentemente, algo simples, mas não na Universidade de Coimbra. Os três estavam trajados com a indumentária própria dos alunos de Coimbra: um tipo de terno preto com camisa social branca por baixo e uma capa preta nos ombros. Esse traje é uma das coisas mais inusitadas de Coimbra. Achei essa foto na internet, não são os alunos daquele dia, mas era exatamente assim que eles estavam:


Descobri que esse traje já foi obrigatório por aqui (até a década de 1970). Hoje ele deve ser obrigatoriamente utilizado para representações oficiais da universidade, como o caso do trio que cantou fado, como também no que eles chamam de praxe: o nosso famoso trote nos calouros. Vê-se muito nesse período do ano vários grupos de veteranos, devidamente trajados, fazendo com que os calouros cantem pelas ruas, realizem exercícios físicos ou mesmo sendo colocados em posições vexatórias. É, a imbecilidade humana não tem fronteiras!

Uma curiosidade: esse traje típico dos alunos de Coimbra inspirou a autora de Harry Potter a criar o uniforme dos alunos da escola de magia Hogwards. A autora, JK Rowling, viveu por alguns anos antes de começar a escrever Harry Potter como professora de inglês na cidade do Porto, Portugal.  Um vez aqui, teve contato com esse uniforme e com algumas estórias de Coimbra. Pronto, bastou inspiração e mais alguns anos para ela ficar multimilionária.  Já pensou se passo por esse processo?? Chega de devaneios. Ah, no filme há também outras semelhanças com o (antigo) estilo acadêmico de Coimbra. Meu blog também é cultura (ainda que inútil).
Atualmente, essa cena é comum na universidade. Mochilas e trajes de Harry Potter. Inusitado, não?Mira o estilo da senhorita...


Voltando ao fado, foi belíssimo! Foram umas três canções, em que um cantava (divinamente) e os outros dois tocavam dois tipos de violão. Fiquei emocionado de tão bonito!

Ah, outra tradição: na hora de cantar e tocar, a capa deve ser envolvida no pescoço, como se fosse uma echarpe. Como  estavam os alunos de duas fotos atrás. E também, de acordo com os costumes, a capa que se sobrepõe ao uniforme nunca deve ser lavada. Eu vi cada uma pelas ruas...

Apesar de jovens, os alunos tocavam e cantavam com vontade e verdade, sem se intimidar com os presentes ou os com os professores (doutores). Pareciam estar orgulhosos de realizar aquilo. O lado bom da tradição. Bonito de se ver! Ao final, fizeram até um grito de guerra típico, gritando aos berros umas frases que não entendi direito. Mais tradição...

Após isso, passamos a uma visita guiada às instalações (não, essa palavra não deveria ser aplicada aqui) melhor seria, aos monumentos que integram a Faculdade de Direito, que também já foi palácio real.

Aqui... tem tanta coisa legal dessa visita pra contar, mas já é tarde e meus olhos ardem.

Mas antes termino com um poema que tem me feito refletir sobre (os encantos de) minha terra:


Canção do exílio

"Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."


                              Gonçalves Dias

Quem nunca ouviu esses emblemáticos versos que, segundo me lembro das aulas de literatura, faziam parte do primeiro movimento do Romantismo brasileiro, no século XIX. Mas qual sua correlação com este blog? E com este que o escreve? Além da óbvia alusão à saudade e aos encantos da pátria natal, que também sinto por agora, descobri nesses dias que tenho algo em comum com Gonçalves Dias. Revelo-o no próximo post.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Começou...

Enfim, tenho condições físicas e mentais de começar este blog, um espaço idealizado para ser o relato de uma experiência sabática: a realização de um doutorado – ou doutoramento, como se diz por aqui – em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Portugal.

Já o deveria ter começado há mais tempo, meio que no calor dos acontecimentos, mas as contingências e burocracias para a minha mudança de Vitória, no Espírito Santo/Brasil, para Coimbra/Portugal, foram deveras limitadoras de qualquer ânimo ou inspiração para ideias que fossem dignas de se compartilhar com outros leitores. Não que agora elas tenham tal qualidade, mas essa será uma constante intenção de uma mente agora  (+ ou -) sã.

O adjetivo “sabático”, para quem ainda não o conhece, refere-se a um período de afastamento das atividades regulares para a vivência de uma experiência diferente das que usualmente você desempenha no seu dia-a-dia. Dizem que isso é salutar e nos torna pessoas melhores. Estou embarcando nessa agora, ao final poderei dizer (ou sentir)!
Bem, minha ocupação principal relaciona-se ao cargo de Capitão da Polícia Militar do Espírito Santo. Para quem ainda não me conhece, espero que isso não seja motivo de rótulos ou estereótipos. A despeito do senso-comum, dê-me um voto de confiança. Pretendo postar (relatar), de forma despretenciosa, as minhas impressões, reflexões e experiências culturais, acadêmicas e, por que não, antropológicas vivenciadas neste país. Afinal, estarei em terras de nossos colonizadores (já descobri que eles não gostam muito desse termo), e será estimulante observar a cultura e o modo de vida português, conhecido por mim apenas dos livros de história e das anedotas populares.

Pois bem, agora, passada uma semana desde minha chegada a Coimbra, posso ver em retrospectiva as emoções e condições de minha mudança de uma forma mais clara e interessante. Passado o didatismo dessas linhas introdutórias, o objetivo destes tópicos iniciais é, portanto, relatar como foram os primeiros dias desde minha partida.

Após muitas festas e encontros de “despedida” com amigos e familiares, todas muito emocionantes (a sensação de ser querido por tantos fez-me sentir uma imensa felicidade!), quarta-feira, dia 04/10/2011 foi o dia “D”: minha partida!!!
De modo especial, marcou-me o momento em que, com as malas prontas, na sala de minha casa, encontravam-se a rezar eu, meu pai, minha mãe e minha avó materna, pessoas que amo, admiro e respeito para além de qualquer limite.  Os sentimentos eram tão verdadeiros (mal conseguíamos pronunciar as palavras)  que me senti de fato abençoado e protegido para enfrentar tudo o que viesse a ocorrer comigo a partir daquele momento.
Para tornar as coisas um pouco mais difíceis para mim, nesse dia chovia bastante em Vitória. Não a ponto de inviabilizar meu vôo, mas para me deixar com as emoções ainda mais a flor da pele. Na linguagem do cinema, a maioria das vezes em que se utiliza chuva nas cenas é para remeter o espectador a um clima/estado de melancolia. Não preciso dizer mais nada, havia sempre uma lágrima tendendo a cair. E em alguns momentos caíram mesmo. Piegas? Pode ser, mas, perdoem-me, poucas vezes me senti assim. Acho que tenho esse direito aqui!
E por falar em cinema, sempre me emociono ao (re)ver um filme chamado “Simplesmente amor”, de 2003 (a tradução deixa bem a desejar. No original: Love Actually). Ele termina com cenas de reencontros de pessoas no aeroporto. Não há palavras ou diálogos, apenas música e anônimos de muitas etnias se reencontrando no salão de desembarque de um grande aeroporto de Londres.

Sempre achei aeroporto um lugar paradoxal: um ambiente normalmente frio e tumultuado, mas com a emoção em suspenso no ar devido a despedidas e reencontros de gente querida. E lá em Vitória, no dia 04 de outubro de 2011, havia gente querida e amada a se despedir de mim. Senti a força e energia que sempre admirava naquele filme, agora em minha vida.
Bom, tirando esse lado lúdico, a melancolia da chuva e meu estado emocional, aeroporto volta a ser um lugar frio e tumultuado, e a cada dia mais. Poupo-lhes dos fatos desinteressantes de um vôo internacional. Não há mais o glamour de outrora. Nem vivi esse tempo para ser saudosista dessa forma, mas posso imaginar. E em nada deve se comparar a viajar hoje em dia. Aperto, desconforto, gente mal educada, falta de gentileza de comissários e passageiros, comida muito ruim, etc, etc. Sem esnobismos: ainda hei de ter dinheiro para viajar só de primeira classe!
Mas enfim, o vôo da TAP cumpriu sua função e me deixou em Lisboa, às 07:00h da manhã do dia 05 de outubro de 2011. Sem conhecer nada e ninguém, peguei minhas duas malas pesadíssimas (para viver pelo menos dois anos, imagina o que não levei...) e peguei um taxi para e estação de trem, de onde eu iria ainda viajar mais 2 horas até Coimbra. Sem ter dormido direito no vôo (estou ficando imune aos efeitos do Dramim), imaginem meu estado. Mas o que importa é que após quase 22 horas de viagem, cheguei (ou o que sobrou de mim) a meu destino final: Coimbra, a cidade muralhada, como dizem aqui.
Havia reservado uns seis dias de hotel para, nesse intervalo, conseguir um apartamento para alugar e me instalar definitivamente. Pensei que seria fácil; tremendo engano. Mas isso é um capítulo a parte. Na sexta-feira, dia 07, houve a aula inaugural do doutoramento. Começaram alguns problemas: como e onde passar meu terno?  Enfiado numa mala, imaginem a situação em que ele chegou. Solução: comprar um ferro de passar! Meu primeiro bem adquirido em Portugal.

Acho que esse primeiro post está ficando grande demais. Melhor parar. Deixa para o próximo o meu primeiro contato formal com a universidade (a aula inaugural) e minhas (des)aventuras para alugar meu primeiro apartamento em Coimbra. Sim, foram necessários 36 anos para que o jovem aqui saísse da casa dos pais para morar sozinho pela primeira vez. Ah, mas lá era tão bom...