Como parte dos primeiros desafios de me instalar em uma cidade como Coimbra, fiquei de relatar como se deu a minha busca por um apartamento para começar minha vida por aqui. Um estudante tentando encontrar um lugar para morar em uma cidade universitária: não sei de que maneira isso poderia se tornar um assunto de interesse geral (e não apenas de amigos próximos e familiares).
Mas essa preocupação inicial me motiva agora a tentar esgarçar essa experiência, ampliá-la para atingir também aquele que como você perde seu raros minutos a ler essas linhas de um relato amador. Mera pretensão, mas aceito o desafio de quem igualmente aceitar o convite de acompanhar essa banal experiência. Fechado? Vamos então à ordenha das pedras!
Talvez um bom começo seja pela força de um verbo cujo sentido é propriamente humano: morar. À exceção de tribos nômades (do deserto?), que acredito ser cada dia mais raro nesse planeta já pré-culturalmente-programado a que fomos lançados, todo mundo precisa de um canto pra chamar de seu, ter uma casa, um ambiente qualquer para viver.
Desde que nossos ancestrais saíram à procura de uma caverna para ter ali relativo conforto; para fugir das intempéries naturais como o frio, o calor ou a chuva; para procriar e abrigar sua prole indefesa; e nós, mais recentemente, para nos proteger de fenômenos sociais como a violência e a criminalidade; os motivos são inúmeros (e não param de crescer) para que tenhamos um lugar fixo (e emparedado) para viver.
E o meu motivo, nesse atual momento, como todos bem sabem, foi o de encontrar esse lugar aqui em Coimbra. Até então, era na casa do papai e da mamãe. Não me envergonho disso. Foram anos ótimos e felizes ao lado deles. Mas no Brasil há um famoso ditado que diz: "quem casa quer casa". Eu (ainda) não me casei, mas bem que poderia haver outro semelhante : "quem sai de sua casa para estudar (em Coimbra) quer casa".
E esse foi meu desejo durante os primeiros dias desde minha chegada. Não, não fiquei na rua até que isso acontecesse. Prudentemente, reservei alguns dias em um hotel para, nesse breve intervalo, ver in locu as possibilidades de estadia por aqui. Acompanhe comigo as minhas dificuldades.
Quando se atravessa um oceano para estar em um local onde se pretende morar, as coisas não tão fáceis quanto uma simples, mas não menos interessante, viagem de turismo. Tudo começa com um limite: os tradicionais dois volumes (malas) com 32 kilos cada. Para passar 10 ou 20 dias, mais do que suficiente (exceto para a crescente parcela de "muambeiros de luxo" vindo da Flórida. Sim, eu vi pessoalmente que eles existem aos montes). Mas para estar 1 ou 2 anos, não! O que levar nesses dois singelos volumes. Certamente todos os meus bens materiais móveis adquiridos ao longo de 36 anos não caberiam ali, apesar da vontade (e tentativa). Olhava desolado o que não coube ou não foi escolhido para entrar na mala. Mas apelei para o desapego!
Não tenho muita coisa, mas façamos um exercício (lembrem-se, vim para morar): roupas (incluindo casacos, calças, camisas, terno, etc), sapatos e tênis, livros, alguma roupa de cama e banho, notebook, arroz com feijão (não, estou brincando), etc, etc... Enfim, basta dizer que utilizei o limite permitido de bagagem!
E nesses primeiros dias aqui em Coimbra, tudo isso ficou dentro da mala, dentro do hotel. Não dava para abrir e colocar tudo no guarda-roupas, na pia do banheiro, ou seja, instalar-me. Com exceção das coisas que estrategicamente coloquei na parte de cima da mala, tudo ficou lá, enquanto eu batia perna tentando alugar um canto. Em alguns momentos, senti-me como meus pertences, espremido e sem ainda poder respirar nessa nova terra.
Coimbra, como todos sabem, é uma cidade universitária. Pela milenar lei da oferta e da procura, onde há muita gente querendo algo, os preços vão para as alturas. Ainda mais quando se chega nesse tipo de cidade logo após o início do ano letivo, que foi meu caso. Não sobrou muita coisa. Perguntando aqui, pedindo indicação ali, vendo os classificados acolá, fui tentando achar um lugar digno e limpo para eu ficar. Esses adjetivos não estão aí à toa, pois vi alguns lugares em que eles não se aplicavam.
De todo esse processo, aqui bem resumido, escolho relatar/compartilhar apenas três momentos pitorescos dessa empreitada. Duas tentativas frustradas e a, já adianto, feliz escolha de onde agora estou.
Bem, as duas tentativas (frustradas) foram frutos de anúncios de classificado de jornal. Ah, um detalhe do linguajar imobiliário português que tive que me acostumar: os apartamentos e as casas para alugar/vender são classificados de acordo com o número de quartos (ou dormitórios, como se diz em São Paulo). Até aí, tudo bem, mas há uma codificação que no início eu estranhei. Via anúncios como este: "Alugo T1 em excelente estado. 350Euros". Pois é, descobri depois que esse número se refere ao número de quartos existentes. Nesse sistema há, portanto, o T0 (sim, sem quarto, tudo no mesmo ambiente, como a nossa famosa kitnet), o T1 (um quarto em ambiente separado), o T2 (dois quartos) e por aí vai. Só achei estranho encontrar anúncios alugando um T1 + 1. Deve ser ignorância minha, mas por que não chamar de T2?
Bem, quando se olha anúncios de classificados, cada palavra adquiri um significado muito forte. Como o anúncio é vendido por caracteres, as palavras são estrategicamente escolhidas pelo anunciante para convencer o leitor a se interessar pelo "produto" anunciado. O problema é que essas palavras muitas vezes não refletem o real estado das coisas. E eu fui, inevitavelmente, vítima da má-fé de alguns anúncios.
O primeiro anúncio que me interessou foi de um T1 "impecável" na Rua do Brasil. Não preciso falar mais nada: na situação em que eu estava, "impecável" e "Brasil" foram muito impactantes. Mas, infelizmente, foi só decepção. Ao ligar para o senhor que anunciava, um primeiro obstáculo: eu não entendia quase nada que ele falava (aquele lance do português de Portugal/do Brasil). Com muito esforço, consegui marcar um encontro para conhecer o lugar. Onde? Na Rua do Brasil: uma das ruas mais tumultuadas e, desculpem a palavra, esculhambadas da cidade. Ai, tadinho do meu Brasil, até aqui... Mas..., já estava ali mesmo!
Então veio o tal senhor. O estereótipo que todos (a maioria, vai...) tem de um português: um senhor com bigodes enormes de fazer volta na ponta. Só faltou ele dizer que tinha uma padaria. Fui com ele ver o tal T1. Lembra que uma das palavras do anúncio que me chamou atenção foi "impecável". Decompondo a palavra: que não peca em nada. Se for assim, aquele apartamento era um herege sem perdão. Falei que iria pensar...e nunca mais vi o senhor Manuel da padaria!
O outro anúncio foi já mais para o final das tentativas. A paciência já estava acabando e fui ver no desespero mesmo. Outro T1, e nem tinha palavras impactantes no anúncio. A essa altura, sendo limpo já estaria ótimo. O que eu queria era sair daquele hotel e me instalar.
O dono da imobiliária veio me pegar no hotel. Um simpático senhor, agora de barba e bigodes aparados e com um português compreensível. Fomos conversando e, em determinada hora, comecei a achar estranho, pois a cidade estava ficando para trás. Chegamos então ao local, bem ermo e sem nenhum comércio nas imediações. O que havia de mais movimentado por perto era um ponto de ônibus, que nem era tão perto assim. Pensei de novo, já estou aqui mesmo...
O prédio por fora nem era de assustar, mas começando a subir as escadas (escuras) comecei a ficar com "medo". Chegamos ao terceiro andar. A dona morava no apartamento de frente. Um senhora falante que foi logo abrindo a porta e dizendo que naquele apartamento moravam duas brasileiras com as quais ela fez muita amizade. Disse que foi como uma segunda mãe para elas. Mas deixou claro que elas eram exceção à sua opinião sobre as brasileiras que vêm morar em Portugal. Segundo ela, a maioria vem para se prostituir e ela prefere, por isso, alugar os apartamentos para rapazes. Eu, pasmo, ouvindo...e ela continuou...evitamos, pois, quando se vê, elas estão com nossos maridos! Achei tudo aquilo de uma maldade e de um preconceito que nem deu vontade de continuar a ver o apartamento. E, pelo que consigo me lembrar, não atendia ao único requisito que ainda fazia questão. O apartamento era muito sujo, daquele tipo que tem crosta de gordura no fogão. Despedi-me brevemente e falei que iria pensar. Se eu pudesse, iria trazer uns amigos que conheço para morar lá. Só pra ela correr o risco de também ficar sem o marido e largar de ser preconceituosa. Pronto, falei!!!
Nesse dia minha moral ficou baixa. Pedi ao senhor da imobiliária que me deixasse próximo a um shopping movimentado e saí andando, à procura de placas de aluguel nas sacadas dos apartamentos da região. Depois de andar por quase uma hora e não achar nada, me senti desolado como a Janete, best friend da Valéria, cantando aquelas músicas tristes ao longo do metrô. Ah, a analogia é ruim, mas o quadro humorístico é muito bom e, lembrando disso naquela hora, até me alegrei de novo. Voltei para o hotel e reiniciei todo o processo!
Para não enfadar, chego logo ao momento em que achei o meu canto aqui em Coimbra. Por indicação de um amigo do doutorado (chama-se Ricardo. Ele e Cláudia, citada no segundo post, estão se tornando meus grandes amigos aqui), entro em contato com outra imobiliária. Ele tinha a disposição um T0 (que também é chamado de studio), em um prédio em cima de um grande shopping daqui, chamado Dolce Vita (que além de tudo, tem até um supermercado). Um lugar ótimo e perto de ponto de ônibus (ops, autocarro), ponto de táxi, de academia de ginástica (aqui ginásio), livraria, estádio de futebol, cafés, restaurantes... Faltava só conferir o apartamento pessoalmente.
Começou bem, portaria (com porteiro), elevador, tudo muito limpo, eu nem estava acreditando. Quando chego no apartamento, pensei: é esse! Pequeno, simples, mas tudo novo, limpo e funcional. Em um mesmo ambiente: cama (embutida), armários, cozinha (equipada com geladeira, fogão e microondas), sala com sofá e tapete. Em outro, o banheiro (limpíssimo e novo). Perguntei, posso me mudar hoje?
No outro dia minhas coisas já tinham saído de dentro da mala e com elas comecei a respirar aliviado. Enfim, tinha a minha casa. Agora "só falta ela ser um lar", como diz a música do poeta Arnaldo Antunes, que embala a leitura desse post. Tento fazer isso todos os dias. Ainda não tenho condições de receber amigos para jantares e trazer vida e animação a ela (limitações temporárias de pratos, talheres, copos...), mas assim que tiver, a casa deixará de ser só MINHA é passará também a ser SUA!!!
Afinal, algo que diferencia nossas casas das distantes cavernas de nossos ancestrais é a possibilidade de partilhá-la com aqueles que gostamos e amamos. Pois, como também diz a letra da música, de nada adianta cama, sofá, parede, janela, teto, banheiro, cachorro, relógio, tapete, cozinha, sem que haja pessoas (amadas e queridas) para alegrar e dar poesia a essas coisas que, por si só, não bastam!
p.s. Na verdade, este é um canto que eu gostaria para mim:
A casa é sua
Arnaldo Antunes
Não me falta cadeira
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar
Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar
Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Olha que eu aceito o convite e mais que depressa tô chegando pra tomar posse. Prometo levar meus talheres e mais um pouco de feijão preto. Já comprou panela de pressão? Beijos.
ResponderExcluirMaria Celia Abreu
A vida é feita de batalhas, e você vai ganhar e está ganhando todas. Quando tiver tudo pronto, me chama pro jantarzinho, levo mais arroz. beijos. Jussara.
ResponderExcluirAcredito que você deveria passar sim pelas dificuldades iniciais, pois nada é tão fácil como parece. E você vem percebendo isso desde as idas ao Consulado do Rio para a solicitação do visto. Mas desta forma, teremos muitas histórias pra guardar e para compartilhar, assim como você está fazendo.
ResponderExcluirMúsica linda e que encaixou perfeitamente com seu relato.
Parabéns e vamo que vamo!!
"Eu vou-me embora, é chegada a hora,não,não chora,nem me faz chorar, o que é tristeza? O que é saudade? Me responde com justiça e não com lágrimas."
ResponderExcluirEu já lhe falei no post anterior, que "difícil mesmo é a travessia..." vc. está conseguindo.
ResponderExcluir"Uma casa portuguesa, com certeza"... coloque uma imgem de Santo Antõnio ou N. Sra. de Fátima, curta sua casa, arrume do seu jeito, coloque suas coisas e seja feliz. Abs.
Rosa Maria Campos
Rosa Maria, esses afazeres domesticos estão me fazendo muito bem. Estou curtindo tudo. Já já minha casa começa a ser um lar de verdade...
ResponderExcluirMárcio, sempre profundo...
ResponderExcluirAdorei sua citação. Desculpe a ignorância, mas só fiquei curioso para saber de quem é.
Abraços e saudades.
Trata-se de um relato vibrante, rico e emocionante em todos os seus matizes! A mesa esta posta! A lua debruçou-se no alpendre! Ficamos eu, vc, Clarice, Manoel e Adelia maravilhados! Avidos de aprendizado, da boa convivência! Pode servir a ceia!! Estamos maravilhados, calmos e felizes!! Saúde!!! xx nls
ResponderExcluirNelson,
ResponderExcluirSeu comentário me emocionou pelo conteúdo e pela poesia nele contidos.
Um grande abraço meu amigo!
Olá, você não me conhece, mas fui apresentado ao seu blog pelo todo orgulhoso seu pai.
ResponderExcluirParabéns pelas conquistas: Doutorado, Doutorado fora do país, novo lar, novos amigos, novas experiências.
E um parabéns pela sua escrita!
Abraços
Sergio K
Olá Sérgio,
ResponderExcluirGrato pelos elogios. De minha parte, fico envaidecido pela forma como conheceu meu blog. O doutorado é uma conquista coletiva e não apenas minha. Pessoas como o meu pai, por exemplo, são mais importantes do que todo o meu esforço despendido para estar aqui.
Um grande abraço e desejo que continue lendo e gostando do blog.
Adorei o blog. É necessária muita coragem para escrever e, depois, se expor. Só por isso, já estarias de parabéns. Ocorre que, para completar, os textos estão ótimos! Um abraço. Caroline Sátiro.
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