quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Caramelos e sabores de infância

Em que será que pensava aquela senhora a jogar milho aos pombos na Praça da República? Avistei-a de longe e pude perceber em seu rosto um olhar distante e nostálgico. Era um fim tarde frio e com céu de nuvens cor de chumbo. Estranhamente no ar havia também o peso desse metal. Uma sensação de que a chuva estava prestes a desatar do céu e acabar com aquela névoa que rodeava a copa das árvores que circundam a principal praça aqui de Coimbra. Essa cena austera e peculiar me levou a parar e sentar em um banco próximo àquela senhora.

De onde eu estava, sem que eu a deixasse perceber que a fitava, constatei sua idade muito avançada pelos cabelos bem branquinhos e por sua pele, excessivamente vincada pelos efeitos dos anos. Vestia um tipo de casaco brocado e uma saia até o joelho. Os tornozelos inchados saiam de uns sapatos sem qualquer tipo de adorno ou enfeites. Cumpriam apenas a função de calçá-la. Desse mesmo modo como aparentava e se vestia, é possível encontrar outras senhoras assim aqui em Coimbra e em Portugal. Uma cidade e um país velhos, que sentem o peso de existirem por tanto tempo. Mas, pelos motivos que descrevi, aquela senhora, com um pequeno saco de milho na mão, despertou o meu interesse e a minha sensibilidade para refletir sobre o tempo.

Sua vida, naqueles instantes, passou a me interessar. Será que teve muitos filhos? Dava-se bem com eles (ou eles com ela)? Perdeu algum deles? Aquele olhar era mesmo de nostalgia (resignação), lembrando-se de tanta coisa (boa e ruim) vivida? Como será chegar a essa idade e não se ter mais todo o tempo do mundo pela frente, como é comum na mocidade?

Antes mesmo que eu parasse de fazer indagações inúteis e silenciosas à minha mente, ela se levantou com dificuldades, amassou o saco vazio de milho e, despertando-me do transe, o jogou sem qualquer delicadeza na lixeira. Foi-se embora vagarosamente, deixando-me para trás com minhas divagações de fim de tarde. Eu iria em seguida de ônibus para casa, mas preferi ir a pé. A despeito dos minutos que iria gastar caminhando, precisava desse tempo e desse esforço físico para me desfazer daquele estado reflexivo.

Passados alguns dias, em conversa com meu amigo Ricardo, ele me falou de algo que me fez (re)pensar aquela tarde. Disse que sua mãe, volta e meia, alertava-o sobre um sentimento muito comum em todos nós, que é o de achar que certos gostos (cheiros/sabores/impressões...) do passado têm mais "encanto" que aqueles vivenciados no presente. Ela chamava esse fenômeno de "sabor de infância".

Depois percebi que realmente isso já aconteceu comigo e já ouvi muita gente dizer que morria de saudades do "cheirinho do bolinho da vovó", do "sabor delicioso de certo doce que só fulano fazia", do "tempo em que se podia fazer isso ou aquilo"... A propósito, acho que Woody Allen se inspirou nessa estória do "sabor de infância" para rodar seu novo filme "Meia noite em Paris".

Depois da conversa, pensei: quantos "sabores de infância" fazem-nos nostálgicos e nos impedem de desfrutar sensações e experiências novas, comparando-as sempre com os invencíveis e mágicos "sabores de infância". Resultado: frustração a se agregar no mar de outras tantas em que vivemos. Arrisco dizer que passado é bom até certa medida, e viver nele não é uma boa opção. O futuro tem que ser melhor, e essa fala (falível) deve ser sempre a do presente.

Mesmo os portugueses, que já dividiram o mundo (ao meio) com os espanhóis, tentam não mais viver do passado. Como todos sabem, eles estão numa crise sem tamanho. Tenho percebido que a vida não está nada fácil para quem vive por aqui. Outro dia, numa quitanda de bairro, ouvi dois senhores se cumprimentando. Um perguntou para o outro: "E aí, está bem?". Sendo-lhe respondido: "Ora, tem que estar!". Levando-se em conta a atual situação portuguesa, achei a resposta, metaforicamente falando, precisa e acertada!

Outro fato que se relaciona com essas reflexões sobre o tempo aconteceu na minha entrevista no serviço de imigração português para a obtenção do visto de residência. O funcionário, por incrível que pareça, foi muito simpático e atencioso comigo. Certa hora perguntei se com o cartão de residente que iria receber eu poderia ir a outro país da comunidade européia. Disse que sim, mas como não sou cidadão europeu, devo estar também com o passaporte. Em tom descontraído, disse que com ambos os documentos eu poderia tanto ir ao Brasil como ali na Espanha comprar caramelos.

Achei aquela comparação inusitada e perguntei se os caramelos da Espanha eram realmente bons. Eis sua resposta: "Devem ser sim, pois na época da ditadura aqui em Portugal, os portugueses, quando os guardas da fronteira descuidavam, iam à Espanha para comprar caramelos".

Indo para casa, no ônibus, pensei: se essa estória for verdade, o caramelo em si não deve ter sido motivo para se arriscar tanto. Talvez o que tornava o sabor do caramelo um "sabor de infância", suficientemente forte para aqueles que se arriscavam a atravessar a fronteira de um país em tempos de ditadura, teria sido a lembrança de um tempo em que se era livre e se tinha direitos, inclusive o de comer inofensivos caramelos.

O que as pessoas não fazem para adoçar a vida. Mas pensando bem, se não for assim, que gosto tem...


p.s. Acho que aquela senhora aproveitava o momento de jogar milho aos pombos para pensar nos "sabores de infância" de sua longa vida. Para ela, o futuro já não deve interessar tanto e o presente deve ser vagaroso como era o seu andar naquela tarde. De qualque forma, o que posso desejar é que sua vida tenha sido doce como os caramelos da Espanha.

13 comentários:

  1. Os caramelos podem ser também bala de goma, bala de coco e até mesmo bolinho de chuva, que tanto adoçou minha infância, mesmo não tendo a fronteira para cruzar, mas os militares para dar continência, principalmente tendo um tenente da reserva como diretor do instituto de educação. Estes sabores enchem minha boca d'agua e também uma grande saudade dos "caramelos" de minha avó, cujo dicionário não havia a palavra não. Que tempo bom! Vagner quero ficar na saudade e no presente, pois no futuro os caramelos poderão vir em formato de tablet...sem sabor, principalmente de infância...

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  2. Querido primo, que belo texto, cheguei a "ver a senhora dando milho aos pombos" parecia a cena de filme antigo. Seus textos continuam otimos. Beijos!
    Celia Abreu

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  3. Márcio,
    Que prazer ler seu comentário por aqui. De fato, passado e presente são prazerozos e, de certa forma, sob controle. Também me pego, às vezes, com uma vontade sem tamanho de regressar no tempo e (re)viver meus sabores de infância. Mas a competição que se faz com eles é injusta. Eles fazem parte de uma época (especial) de nosssas vidas e ficaram, de algum modo,aprisionados lá. Relembrá-los é, de fato, inebriante.
    Mas o que dizer do futuro?
    Penso uma coisa: os novos sabores, que nos permitirmos viver (sem comparações), só se tornarão "de infância" no futuro!!

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  4. Olá...

    Sabores de infância.... Vou lhe contar um fato: o educador Paulo Freire ( meu conterrâneo) quando estava exilado, contava ao filho a saudade que tinha de pitangas do Recife. Explicava, explicava e o filho não conseguia entender nem sentir a realidade do que era uma pitanga, que sabor tinha e por ai vai... . Paulo Freire, dizia: " a coisa pior do exílio é vc não conseguir que teu filho entenda o sabor da pitanga" Acho isso maravilhoso...
    Que vc tenha saudades e muitas lembranças dos "sabores da infância.

    Abraços,

    Rosa Maria Campos

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  5. Lindo texto amigo. Depois de algumas coisas que me aconteceram, passei a pensar muito nos Sabores de minha infância, e apesar de não ter tempo nem para o presente me pego pensando nas coisas boas do passado(e ruins também para não repetir os erros). O melhor de tudo é que tenho mais coisas boas do que ruins para lembrar: as conversas intermináveis e cheias de gargalhadas com meu pai, o bolo de fubá com queijo da minha tia, a sonequinha vendo novela a noite no colo da mamãe, férias na roça, praia com os amigos em domingos ensolarados, viagens(lembrei agora daquela para Porto Seguro)...o tempo realmente não para e quero continuar comendo meus caramelos por muito tempo.

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  6. Não consegui colocar meu nome no Post anterior.
    Faltou dizer também que você faz parte dos sabores da minha infância.

    Rosiana Denaday(Rose)

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  7. Meu amigo!
    Tenho lido seus textos, e claro, impossível não os ler sem ter minha atenção também voltada para o que a minha graduação me preparou. Embora eu a tenha renegado..rsrs, há coisas q nao dá p se esquece. Pois bem, tenho notado/analisado (c olhos de amigo..rs) seus textos bem escritos... bem amarrados e c bom enredo.
    Bom, tenho percebido desde os seus primeiros textos, sempre uma certa de nostalgia. OK! Nada mais normal na atual conjuntura q vives. No entanto, este último fez com q eu perguntasse p mim algo q gostaria de lhe perguntar. As reflexões q vc tem feito atualmente; são resultado da experiência q está tendo ou são apenas reflexões antigas, as quais hj estao mais afloradas?
    O doce sabor do "caramelo" é uma saudade q nao me dói sentir, e espero q sinta o mesmo... pois é saudade de algo bom q passou... passou para q novos "caramelos" pudessem adoçar nossas vidas ao longo desta nossa caminhada!
    Muito sucesso p vc sempre... continuo na torcida.
    Grande abraço.
    Davison

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  8. Caro Silvagner…

    Bonito texto repleto de considerações tão profundas e presentes em nossas vidas…

    Acredito que as reflexões, experiências, amadurecimentos nos leva a valorizar esses gostos, sabores e impressões retardatariamente, como valorizaremos os atuais num futuro próximo… Talvez nossos Pastéis de Belém tenham outro sabor daqui uns anos, sei lá, no dia em que estejamos com menos saudades da família, talvez quando já tenhamos concluído o doutorado, ou quando simplesmente estejamos em uma outra fase ou momento de nossas vidas…

    Morro de saudades da mousse de chocolate da minha Bisa, mas sempre arrisco-me por aí buscando uma mais saborosa :)

    Grande Abraço,
    Allan

    Ps. Acredito que esse “Ora, tem que estar” bem típico dos portugueses, seria o nosso: “Sim, está tudo bem”… Ambos não querem dizer o que dizem, seriam apenas um cumprimento… Uns culturalmente mais pessimistas e outros otimistas…

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  9. Então Silvagner...
    Sempre sou um dos primeiros a comentar em seus incríveis e instigantes relatos e justamente neste eu demorei um pouco.
    Tanto pela correria deste último final de semana que logo em seguida veio o feriadão, mas principalmente por eu ter tentado buscar as palavras certas pra transparecer o quanto este relato mexeu comigo(acredito que não só comigo).
    Lembrar dos sabores de infância é realmente uma deliciosa nostalgia. Pois quem não recorda dos bolinhos da vovó? Da minhã vó eu me recordo das rosquinhas doce envolta por açúcar e canela e dá me minha outra vó, lembro-me de sua sabedoria e tranquilidade(morro de saudades).
    Realmente fiquei bem mexido desde a primeira vez que li este post(foram várias). Tanto com a descrição da velhinha, quanto no reais sabores de infância descritos.
    Não cansarei de dar os parabéns, talvez para estimula-lo ainda mais(nem é tão necessário, pois acredito que tenha tomado gosto) para continuar nos agraciando com tão boa escrita repleta de verdade e emoção.

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  10. Bom, por cronologia, o Davison primeiro:
    Caro amigo,
    Essas reflexões são de agora, mas não é possível separá-las de minha vivência anterior. Certamente essa experiência atual tem me deixado mais sensível para agora expô-las dessa forma.
    De qualquer modo, agradeço seu comentário. Eu também estou sempre à procura de novos e mais doces caramelos.
    Um grande abraço,
    Silvagner

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  11. Prezado Allan,
    Sinto que necessitamos nos conhecer pessoalmente. Seus comentários são deveras inspiradores. Fico muito grato e espero que continue lendo essas mal traçadas linhas.
    Abraços,
    Silvagner

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  12. Bruce,
    Você sempre amável e incentivador. Muito obrigado e espero sempre corresponder às suas expectativas.
    Um grande abraço,
    Silvagner

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  13. Rose,
    Não esqueci de você. Ficou por última pois você é especial e também parte de um dos meus melhores sabores de infância. Te adoro para sempre. Muitos beijos para você e para toda a familia.
    Silvagner

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