quarta-feira, 24 de julho de 2013

Manifestações (em) crônicas


Terça, 18 de junho de 2013, às 12:06h.
De repente, o Brasil, que sempre foi o país do futuro, decidiu ser o país do presente. E, ao vê-lo grotesco, sem filtros, percebeu que o futuro é agora, bem ali na esquina.

Terça, 18 de junho de 2013, às 19:11h.
Com seus escudos da tropa de choque, a polícia ergueu um enorme espelho no meio da Avenida Paulista. Nele, a sociedade brasileira viu-se refletida na sua cultura de violência; no seu discurso embotado de que "bandido bom é bandido morto", de que "direitos humanos são para humanos direitos"; no violento, porém popular Capitão Nascimento, com suas “eficazes” técnicas de “combate” ao crime; no midiático "polícia tem que descer a ripa em bandido". Enquanto o espelho estava cotidianamente voltado para as periferias, longe dos holofotes, a lógica era “aceitável”. Mas lá no meio da avenida, com a câmera ligada, estudantes mostraram flores ao espelho de aço, em protesto pacífico à violência desmedida. A polícia, por sua vez reflexo da sociedade de onde saiu e convive, não respondeu com igual delicadeza. Quem sabe quando o espelho refletir imagens mais humanas da sociedade brasileira, com cidadãos e policiais mais consciente dos seus direitos e deveres, talvez aí tenhamos reflexos civilizados.

Terça, 18 de junho de 2013, às 22:18h.
Já que "vinte centavos" virou metáfora para tudo, acrescento mais uma: não é apenas por vinte centavos, é por uma NOVA POLÍCIA: que respeite e proteja o cidadão e não o poder político que a controla; que não teime em usar de forma irresponsável a força que lhe é legalmente autorizada; que seja responsável e preste contas dos seus atos perante a comunidade na qual atua; que tenha seus profissionais respeitados, treinados e bem remunerados; que se envergonhe das fotos e vídeos em que covardemente outros policiais abusam do poder que lhe foi investido ou usam-no de forma amadora; que se orgulhe em prestar rotineiramente um serviço tão essencial e caro à sociedade, a segurança; que se empenhe na profissionalização desse serviço, evitando amadorismos inadmissíveis e vexatórios.
Não são vinte centavos, são anos de mudança. Espero que ela se inicie com esse surpreendente despertar da população brasileira para os seus reais problemas.

Quarta, 19 de junho de 2013, às 13:40h.
“- É uma revolta?”
“- Não, Majestade, é uma revolução.”
(Diálogo entre Luís XVI e o duque de Liancourt, após a queda da Bastilha)

Quarta, 19 de junho de 2013, às 22:58h.
Como o mundo não começou ontem, é bom (re)lembrar.
O povo tomou as ruas, em 1984, clamando por eleições diretas para presidente. Conseguiu!
Em 1992, os "caras pintadas" pediram a saída de um presidente. Conseguiram!
Neste ano, milhares saem às ruas pelos metafóricos 20 centavos. Conseguiram!
E agora? E depois? E antes? Tudo como dantes no quartel d'Abrantes?
Se no princípio era a metáfora, é preciso então que ela se faça verbo: votar, respeitar, fazer, exigir, cumprir, defender, trabalhar, não-roubar, não-corromper, não-subornar, estudar, amar (mesmo com a ameaça de Feliciano), [...] e, principalmente, protestar. Ah, e com sujeito e predicado bem definidos. Não é política nem nada. É questão de gramática mesmo.

Sexta, 21 de junho de 2013, às 13:08h.
Ei, você que acordou indignado com a ênfase dada pela mídia à violência, praticada por uma minoria durante os protestos, manchando a legitimidade da causa da maioria. Aconteceu, e acontece todo dia, com a polícia no seu legitimo e necessário, porém complexo, poder de usar a força para manter e lei e a ordem.
Bem-vindo à lógica da imprensa e do senso comum: toma-se a minoria, ou comportamentos desviantes, e dá-lhe o sentido do todo. O porquê disso? No caso da primeira, sensacionalismo e intenções ocultas. Na segunda, preguiça de pensar.
A violência não tem "lado"; é sempre aviltante e, infelizmente, parte da natureza humana. A aceitação a ela e a forma de controlá-la, isso já é outra história.
"O difícil não é fazer, mas controlar uma revolução." Honoré Gabriel Riqueti de Mirabeau

Sexta, 21 de junho de 2013, às 13:08h.
Diante de tantas bobagens ditas por aí, não custa lembrar: há três poderes, cada um com competências próprias; a Dilma preside um deles, em nível federal. Ela não pode, e nem deve, fazer tudo. Isso seria uma ditadura. Além disso, 500 anos de problemas não se resolvem em 5 dias. Parcimônia, conhecimento e clareza nos pleitos. O gigante não acordou, nem nunca dormiu em berço esplêndido. Ele talvez esteja nascendo. E ainda falta ensinar-lhe a andar.

Sábado, 22 de junho de 2013, às 12:55h.
Mais duas da série "o que você precisa saber para não ser um cidadão que fala irrefletidas besteiras":
1) #foradilma, só após a próxima eleição presidencial. Antes disso, é golpe de Estado ou impeachment. O jogo, ainda bem, tem regras;
2) Joaquim Barbosa não é político nem nunca se mostrou interessado em concorrer à presidência do executivo federal. Estamos querendo mais um salvador da pátria? Basta ler as páginas de qualquer livro de História. Sempre acham um em momentos de crise. Apenas um exemplo: aqui em Portugal, há alguns anos, escolheram um competente jurista para ser Ministro das Finanças. Como ele conseguiu sanar as dívidas do país, colocaram-no na função de chefe de estado. Salazar governou ditatorialmente por cerca de 40 anos.

Sábado, 22 de junho de 2013, às 12:55h.
G1 – Portal de notícias: Dilma diz que apoiará plebiscito para Constituinte exclusiva da reforma política e afirma que "iniciativa fundamental é nova legislação que classifique a corrupção dolosa como crime hediondo, com penas severas".
Prezada presidenta, sei que a senhora não é do Judiciário, mas tem um cara que viveu lá no século XVIII que tem um recado pra senhora: "os crimes são mais efetivamente prevenidos pela certeza das penas do que por sua severidade." Cesare Beccaria

Quarta, 26 de junho de 2013, às 13:11h.
Democracia não é e não pode ser exclusivamente fundada na regra da maioria e na liberdade absoluta de expressão. A maioria precisa de limites ao decidir e ao falar. Muitos pensam que democracia é a voz "cega" da maioria. Mesmo Sócrates desconfiava dessa concepção. À época, os sofistas – famosos pelos argumentos capciosos usados para enfraquecer o verdadeiro, em favor do falso, dando-lhe aparência de verdadeiro, – sabiam muito bem manipulá-la em proveito próprio e escuso. Mas ainda hoje uns teimam em desconsiderar os séculos de aprendizado histórico que nos separam de Sócrates. Não precisamos mais de cicuta. Ou melhor, desenvolvemos antídotos. Senão, de que servem a tripartição dos poderes e os direitos humanos? Servem para evitar a opressão histórica das maiorias que, num passado muito recente, desconsideraram (ou exterminaram) a existência de minorias. Sim, parece incrível, mas mulheres, negros, judeus, índios, ciganos, deficientes, homossexuais; todos já foram, por suas respectivas condições, considerados ou não pertencentes à raça (sic) humana ou cidadãos de segunda classe. Oh, wait... parece que alguns ainda são.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

N'além mar


N'além mar, há mar tanto
que até mesmo o pranto
faz do amar um oceano.


Escreio


Escrevo por um impulso de Sherazade,
para a vida de mil e uma noites em claridão.
Leio por uma clara necessidade,
para a vigília de cem anos de solidão.


segunda-feira, 8 de abril de 2013

Metaviagem no autocarro



Livros são cheios de histórias. Apetecem-me tanto as estórias inventadas quanto as histórias (supostamente) verídicas. Por meio delas posso viver outras vidas e, assim, atenuar minha insuficiência existencial. Uma só vida é pouco para “quem quer passar além do Bojador”. Encontro nos livros a alteridade que me dá possibilidades infinitas de ser, pois o que sou é sempre pouco, tacanho, normal. Neles multiplico-me. Por páginas fantasiadas, numa espécie de espelho de letras, posso ver em mim os reflexos de Bentinho, Brás Cubas, Gregor Samsa, Aureliano Buendia, Dom Quixote, Jean Valjean, Macabea... Suas venturas e desventuras mostram-me a vida humana em prisma, cujas facetas, apesar de não as ter vivido, mostram-me cores que minha limitada existência não poderia enxergar. Por páginas documentadas, posso (re)viver épocas inalcançáveis, remotas, nas quais viveram Aristóteles, Júlio César, Da Vinci, Voltaire, Mozart, Darwin, Churchill... Seus horizontes históricos fundem-se ao meu, permitindo a compreensão do mundo em que vivo com mais clareza e menos alienação.

Entremeando minhas leituras de filosofia e direito, tenho lido sobre a história da Europa. Estudar por aqui me impulsiona nesse sentido. Afinal, apesar de não cintilar como outrora – e muitos afirmarem que sua função na nova ordem mundial é de ser apenas o museu do mundo – o legado europeu nos constitui culturalmente. Economia, política, artes, língua, direito, religião... O Velho Mundo não é velho à toa. O eixo pode ter se deslocado, mas o epicentro da vida humana tremeu primeiro por estas bandas. Sentimo-lo forte até hoje, o que reforça meu interesse.

Dia desses estava eu no ônibus, que aqui em Portugal tem o nome de autocarro, em direção à universidade. Continuava a leitura de um livro chamado “Breve História da Europa”, de John Hirst (2012, Editora D. Quixote). O marco inicial: o mundo clássico, Grécia e Roma; o recorte final: a Revolução Francesa. O autor, com a pena leve e bem humorada, expõe seus motivos e os fatos históricos; eu, apreciador desse tipo de escrita, apenas viajei na leitura.

No autocarro, concluía a parte correspondente ao fim da Idade Média. Eu dormira mal a noite anterior. Talvez por conta disso, fui tomado por um sono avassalador que me fez cochilar por não sei quantos minutos. O embalo do coletivo levou-me a uma metaviagem: na viagem de autocarro à universidade, embarquei noutras viagens, a da leitura e a dos sonhos. Nesse lapso passaram-se umas coisas estranhas que, por carência de terapia e psicanálise, compartilho com o anônimo leitor.

Quando as pálpebras pesaram, senti que minha cadeira despegou-se do autocarro e, numa vertigem de montanha russa, via os séculos passarem como segundos diante dos meus olhos. Assim que me estabilizei da tontura temporal, observei que era noite e que havia alguns animais ao redor de um estábulo. Havia também um choro de criança que acabara de nascer. Tudo era muito rústico; uma simplicidade que comovia. Dentro estavam os pais, a mirar o rebento que humanamente choramingava. No céu uma estrela brilhava forte e, conduzidos por ela, logo chegaram três homens com roupas exóticas e luxuosas. Pareciam reis e cada um deles trazia um presente para o menino-Deus. Sim, o delírio havia me conduzido a um rincão inexpressivo do Império Romano, no ano que dividiria nossa história em antes e depois. Comovido diante da cena, lamentei que toda aquela simplicidade, assim como os ensinamentos de perdão, compaixão e amor ao próximo que aquela criança iria vivenciar e ensinar nos seus breves 33 anos de vida, tivessem trilhado um caminho tão (des)humano.

Mas acho que nesse momento, enquanto contemplava a natividade, o autocarro fez uma brusca curva, o que não me acordou, mas me levou ao século IV, quando a religião que os homens fundaram a partir dos ensinamentos daquela divina criança tornou-se a oficial daquele vastíssimo Império Romano. A partir de então, cada vez mais os humanos distanciar-se-iam da sua mensagem de amor. Por coincidência – e não sei explicar por que nem como –, quando meu veículo passou num buraco, pode de ter sido isso, minha viagem saltou para o século XI, no centro da Europa. Em frente a um castelo vi exércitos se formarem para, em nome da oficial religião, marcharem em guerra para o local da bucólica e divinal manjedoura, que há alguns minutos – quer dizer séculos – eu vira nascer aquela criança. Para toda guerra há um inimigo: agora eram os mouros, que haviam tomado a Terra Santa. “Em nome de Deus, partamos para libertá-la”, gritavam os cavaleiros em coro e com raiva nos olhos. Cruzaram a Europa e pelo caminho muito se matou, muito se destruiu e muito se afastou do verdadeiro Cristo, que de amor se transformou em bandeira de guerra. Ao ver os exércitos perfilados, com suas armaduras e lanças medievais, novamente eu lamentava o que a intolerância e outros interesses escusos são capazes de imprimir no espírito humano.

Agora foi uma frenagem do autocarro. Minha cabeça foi à frente e com isso o tempo acelerou novamente. Era o século XVI e avistava agora um mosteiro, em algum lugar da Alemanha. Vi um monge que se angustiava vendo toda aquela história de (má) fé que os humanos haviam desvirtuado. Percebi que ele pacientemente traduzia o livro sagrado de sua religião para a sua própria língua. Deduzi tratar-se de Martinho Lutero. Sua empreitada possibilitou que todos os fiéis de seu país pudessem interpretar diretamente da Bíblia – até então escrita em latim, língua incompreensível para a maioria da população – os ensinamentos da religião cristã, livrando-os da intermediação oficial, e até então necessária, do clero.  Num ligeiro avanço temporal de brevíssimos anos – obra de um leve solavanco provocado pela falta de perícia do motorista na passagem de marcha –, testemunhei também Martinho Lutero afixar suas 95 teses na porta de uma catedral, criticando a forma mundana, de fáceis indulgências, com a qual a igreja se relacionava com seus fiéis. Ele foi excomungado pela Igreja Católica e o mundo nunca mais seria o mesmo. Mexeu em algo que, como dizem, não se deve discutir. Ele não só discutiu como provocou um cisma que sangraria a Europa por séculos, multiplicando religiões que professariam, no âmbito pessoal e político, sua “correta” fé.  

Eu já estava extenuado com tantos solavancos e saltos temporais. Mas o último destino, provocado por outra frenagem brusca – talvez o motorista não tenha visto a senhora que principiava atravessar a rua – levou-me a outra noite, essa trágica e infame. Havia sangue e cadáveres às centenas pelo chão. Todos mortos naquela única noite. Repugnou-me tanto a cena que não identifiquei de imediato que parte da triste e sangrenta história humana eu estava a ver agora. Percebi então que eu estava em Paris, numa noite de 1572, quando se comemorava o dia de São Bartolomeu. O rei da França, que era católico, deflagrou uma guerra civil contra os protestantes, aqueles que seguiram o rompimento de Matinho Lutero com a Igreja Católica. Só naquela noite estima-se que três mil pessoas tenham morrido de forma brutal nas ruas de Paris. No final da guerra, dezenas de milhares. Um genocídio provocado por intolerância religiosa, que eclipsou a razão humana. A instável ligação entre religião e política mostrara suas potencialidades. Há duas explicações para a formação da palavra religião, ambas latinas. A primeira teria origem no vocábulo religare, ou seja, a religião serviria para religar o homem a Deus. A segunda, na palavra latina religio, isto é, respeito, reverência a algo sagrado que para uma religião tem transcendência divina. Na noite de São Bartolomeu, nada se ligou a Deus, não houve respeito à vida nem àquela criança nascida a 25 de dezembro, fundamento da fé de todos os que naquela noite mataram ou morreram.

Quando eu já estava nauseado por ver em toda parte o sangue derramado pela intolerância, senti alguém bater no meu ombro. Uma senhora que sentava ao meu lado percebeu o meu cochilo e me alertou: “Gajo, é o ponto final!”. Desci do autocarro aturdido e perguntando-me por que razão meu delírio lúdico fez parada justamente naqueles pontos. A história da Europa é tão vasta; e eu assim, tão restrito. Freud, ou qualquer psicanalista, certamente teria um diagnóstico para mim. Os sonhos, segundo eles, revelam aspectos aparentemente insondáveis do nosso inconsciente. É preciso buscá-los nas profundezas de nossa alma. Talvez a causa do meu delírio esteja mesmo escondida entre os desfiladeiros e penhascos do meu inconsciente, em nós da minha alma que precisam ainda ser desatados.

Mas para além do meu inconsciente, para fora de mim, dói-me também a realidade. Pode ser que minha metaviagem tenha sido influenciada pela constatação recente de que a intolerância religiosa permanece latente. A intolerância entre “eleitos” e “ungidos” de uma religião para com outras religiões já gerou massacres e guerras santas que, não sei como, revestiram-se e legitimaram-se como “santas”.  Hoje, essa intolerância parece extrapolar a fé particular e dirigir-se novamente ao lugar onde não deve haver religião, o Estado. Isso porque dentro dessa construção humana, que há tempos tornou-se laica, convivem humanos plurais, de diferentes religiões, de diferentes visões de mundo, de diferentes etnias e orientações sexuais; que merecem – e devem – todos eles serem respeitados em suas legítimas e lícitas maneiras de viver a vida. Dói-me ver a intolerância religiosa misturando-se novamente com a política, levantando bandeiras de discriminação, menosprezo e ódio a certas minorias, num regresso que permanece ainda incólume na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. E para isso não há psicanálise que dê jeito. Ela dá jeito, talvez, no seu atual presidente.

Assim, não sei se tudo isso teve origem dentro ou fora de mim. Talvez meu sonho-viagem precise de anos de psicanálise. Quem sabe de intermináveis lutas pela efetivação e respeito aos direitos humanos. Eu, por enquanto, só tenho a preciosa atenção do leitor, que numa metaviagem como a minha, pousaria em outras paragens, em outras latitudes, em outras histórias. O inconsciente é fascinante e assombroso, como são a vida e os livros, com tudo mais que dentro deles cabe.

domingo, 7 de abril de 2013

Separados, mas iguais



“... mas que beleza, em fevereiro, tem carnaval”, anuncia a música de Jorge Ben Jor. O mês é oportuno para tecer divagações sobre esse hiato moral que anualmente vem manchar de carmim nossos católicos fevereiros. Não faltariam assuntos para uma boa crônica. Nesses quatro dias em que “pode-se tudo”, pelo menos para aqueles que se lançam despudoradamente à folia, vê-se muitas coisas inusitadas na extensão deste “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.

Basta o sol desaparecer no horizonte da já carnavalesca sexta-feira para se constatar que “alguma coisa está fora da ordem”: o homem que se traveste de mulher sem por isso ser achincalhado; a bebida consumida como se não houvesse amanhã; o som alto que não respeita o sossego alheio; a rua que cede lugar aos blocos carnavalescos, aos carros de som e aos trios elétricos; o lixo que se acumula inerte no espaço público; o cheiro de urina derramada nos cantos de rua e que não respeita o olfato civilizado; a alegria excepcional e quase impositiva que escarnece da tristeza ordinária; o caos com data para acabar. Tudo renderia ótimas crônicas na pena de Machado de Assis ou de Rubem Braga. Eles tiveram os seus carnavais. Escreveram magistralmente sobre eles; mas os de hoje, pela magnitude e permissividade da folia, dar-lhes-iam inspiração infinita.

Contudo, não é sobre o carnaval que consumirei o tempo do caro leitor. Além de não dispor do talento daqueles mestres, neste fevereiro algo assombrou-me mais que as extravagâncias e “anormalidades” carnavalescas. Não foi coisa que a folia anual impunemente permitisse. Consternei-me com a manifestação de um mal que há milênios ronda sub-repticiamente o desejo civilizatório da humanidade.

Desde quando juntamo-nos para viver em sociedade – e isso já faz mais de dez mil anos –, convivemos com esse perigo rasteiro, iminente. Basta que uns (seres humanos) considerem-se diferentes dos demais, passando a usar essa diferença para arbitrariamente segregar e humilhar algum grupo de pessoas, para que a víbora da discriminação soerga-se das profundezas da alma humana, consumindo-nos na vileza de seu veneno. Volta e meia ela chacoalha a sua calda e dá o bote. Sua picada faz adoecer uma sociedade. A discriminação e o preconceito são males crônicos cuja cura muita vez necessitou do sangue dos afetados, derramado em praça pública para restituir o “simples” desejo de ser tratado como igual. Mas a serpente é resistente, mutável, sedutora. Volta a atacar quando uns teimam em querer ser mais iguais que outros.

Seu veneno manifestou-se desta vez em Muniz Freire, uma cidade com cerca de 20 mil habitantes no sul do Espírito Santo. O fato parece singelo, mas reflete séculos de História. Era uma quinta-feira após o carnaval, época em que, conforme já se tornou clichê, o ano começa no Brasil. Também começaram as aulas na escola de ensino fundamental daquele município. As crianças reuniram-se em alvoroço para saber em que turmas seriam agrupadas. O pequeno Pedro, de oito anos, ficou feliz ao saber que todos os seus coleguinhas do bairro – o mais pobre do município – haviam ficado na mesma turma. Achou aquilo incrível. A escola de fato era um lugar de muita sabedoria. Sabiam até que o Felipe, o Diego e o João, amigos do Pedrinho, deveriam ficar na mesma classe, pois amizade é algo que não se separa.

Mas a inocência de Pedrinho esconde a face vil de outros propósitos. A serpente armava-se para dar o bote. Em deliberação no Conselho Municipal de Educação, do qual participam alguns pais dos alunos, ficara acordado que as turmas seriam divididas de acordo com critérios sócio-econômicos, ou seja, os filhos dos mais abastados e influentes do município ficariam separados daqueles meninos do bairro do Pedrinho. “Nada contra aqueles garotos” – pensou mentalmente um dos pais em assembléia; “são até parecidos com nossos filhos”, completou o pensamento –, mas eles não têm a mesma estirpe do João Guilherme. Seu pai jura que ele será médico e, para isso, necessita de uma formação “diferenciada”. Aqueles garotos do bairro do Pedrinho, por não pertencerem a esse futuro restrito, só atrapalhariam. Assim também pensaram os pais da Isabel (9 anos), da Carolina (7) e do Fernando (10); duas promissoras advogadas e um vocacionado engenheiro.

Não julguemos as intenções dos pais envolvidos. É natural querer o bem dos filhos, que mesmo criminosos confessos serão sempre para os pais os réus injustiçados. Mas se trata de uma escola pública. Há funcionários públicos que ratificaram a decisão do conselho. E isso é manifestamente intolerável nesta quadra da História, que já possui páginas suficientes para o aprendizado do que significa a igualdade.

Notável parte desse aprendizado vem dos Estados Unidos. Após a aprovação da emenda à constituição norte-americana, que aboliu a escravatura em 1863, sucedeu um longo período em que a sociedade da época continuava ainda envenenada pela ofídica discriminação racial. Apesar dos esforços do presidente Abraham Lincoln para por fim à escravidão nos EUA – ótima oportunidade de reviver esse importante episódio está no filme “Lincoln”, de Steven Spielberg, que concorre ao Oscar de melhor filme deste ano –, a discriminação racial não cedeu sua marcha. Apenas se metamorfoseou. Os negros, de declaradamente diferentes da raça humana, passaram a “separados, mas iguais”.

Surgiram então escolas, vagões de trem, bebedouros e outros espaços públicos exclusivos para os negros. Os serviços eram oferecidos, de forma separada, a todas as pessoas, termo que nesse momento já incluía os negros. Estes não deveriam mais se queixar, pois os serviços, apesar de separados, eram “iguais”. Essa forma de conceber a igualdade não tardou reverberar em protestos e disputas jurídicas. Emblemático foi o episódio ocorrido em 1957, na pequena cidade de Little Rock, no sul dos EUA, quando um grupo de nove alunos negros necessitou de escolta policial para frequentar uma escola até então exclusiva para brancos.

A Suprema Corte decidira pela inconstitucionalidade das medidas de segregação racial, entendendo que tratar os negros de forma separada, mas igual, infringia o princípio da igualdade. As autoridades escolares iniciaram, numa espécie de projeto experimental, uma política de integração racial, decidindo pela inclusão dos nove alunos negros na escola de Little Rock. Ocorre que as autoridades desconsideraram a constatação do físico Albert Einstein: “É mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito”. Foi necessária a intervenção de centenas de policiais e integrantes do Exército para quebrar o preconceito em Little Rock. Diante de uma turba, composta em sua maioria por enfurecidos pais e mães dos alunos brancos, os jovens negros foram impedidos de adentrar a escola. Após alguns dias de protestos, e com escolta policial, os alunos negros entraram para as salas de aula. Na porta de cada sala, permanecia um policial para evitar as agressões. Entretanto, nada os protegia dos insultos e humilhações por parte dos alunos brancos, cruelmente educados para não aceitar o diferente. Little Rock foi um marco na luta do movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA, que se radicalizou na década de 1960, quando Martin Luther King capitaneou o movimento. Parece incrível, em tão pouco tempo, o sonho desse líder, proclamado em um discurso antológico (“I have a dream...”), ter se materializado naquele país, cujo primeiro presidente negro acaba de se reeleger.

Little Rock e Muniz Freire são cidades distantes no mapa. Todavia, o que importa é a distância temporal que nos separa do episódio acima descrito. Nesse período, a humanidade aperfeiçoou um soro antiofídico capaz de curar as picadas da serpente que nos ronda, envenenando-nos com o desejo de discriminar o semelhante. Deram-lhe o nome de direitos humanos. Alguns zombam deles, dizendo que se trata de mero placebo. Outros vociferam que é preferível “matar a cobra e mostrar o pau”. Mas o que, de imediato, curou Muniz Freire da lamentável discriminação social na escola foram eles: os frequentemente desdenhados direitos humanos. Sem o uso de força policial, sem matar a cobra nem mostrar o pau – como foi necessário nos tempos de Little Rock –, a medida foi revertida por determinação do Ministério Público Estadual e os alunos foram reagrupados, agora pelo isento critério da ordem alfabética. Pedrinho e seus amigos do bairro pobre de Muniz Freire foram separados, mas agora eles são iguais.

Os direitos humanos afugentaram de Muniz Freire a rastejante e sorrateira discriminação social. Mas ela continua solta por aí, à espreita, prestes a picar novos tornozelos de mentes fracas e alheias à nossa herança jurídica e civilizacional. Quem testemunhar o bote, denuncie. O soro contra o seu persistente veneno está guardado lá na Constituição Federal. Basta aplicá-lo de imediato. Evita barbáries, dispensa mártires e cura males que adoecem a igualdade, a liberdade e a fraternidade; a tríade francesa que há duzentos anos mostra-nos o caminho – cercado de cobras e outros perigos – para a convivência civilizada de humanos livres e iguais.


quinta-feira, 14 de março de 2013

Tríptico político

Brancos dias enfumaçados
anunciam papa portenho,
evangélico ferrenho,
direitos humanos ferrados.

E eu, o que tenho?
A esperança em farrapos.
Na alma, um enfisema.
Tanta má fé envenena.

E eu, o que sou?
Um ser sem cabimento.
Ovelha desencantada,
cidadão sem rebanho.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Hakuna matata: passaporte para um turista em apuros



Londres é dessas cidades para se embasbacar. Basta caminhar por suas ruas e parques, deslumbrando-se com a imponência e beleza de edifícios, palácios e monumentos – admiravelmente conservados até hoje –, para sentir a riqueza de sua vida social e multicultural. Nota-se uma cidade de singularidades das quais os londrinos são orgulhosos e fazem questão de manter: ônibus vermelhos de dois andares, táxis pretos, sistema de metrô sesquicentenário, carros e ruas com mão de direção contrária, moeda exclusiva, polícia dos bobbies, dias cinzentos e nublados; tudo isso e muito mais – que à primeira vista pode soar arrogante, mas a educação e o bom humor dos ingleses desfazem essa suposição – integram o patrimônio cultural de uma cidade e de um país separados do continente europeu por apenas alguns quilômetros do Canal da Mancha.

Há alguns dias pulei para o lado de lá da Mancha e, junto de minha irmã, cunhado e sobrinha, fomos passar o réveillon na capital do Reino Unido. Obviamente, três dias foram poucos para mostrar-lhes o que havia me fascinado em minhas outras viagens àquela cidade. Além disso, os gostos diferem e não desejaria enfiá-los em museus, galerias de arte e livrarias; nem cansá-los com longas caminhadas por parques e ruas, um prazer gratuito que cultivo quando estou em cidades como Londres. Achei de bom tom acompanhá-los pelos interesses demonstrados, que também me apeteceram. Gostaram de tudo, com ressalva ao exorbitante custo de vida que, mesmo para um turista de poucos dias, causa rombos orçamentários limitadores de uma estadia mais prolongada. Pelo menos para nós, meros assalariados, que juntamos uns suados trocados para testemunhar o que o dinheiro fez e faz daquela cidade.

Tudo ia muito bem, e a cidade já os encantava igualmente. Mas meu primeiro dia do ano reservou-me uma surpresa daquelas. Após um cansativo e prazeroso dia de passeios, e da inacreditável visita pelos andares da centenária loja de departamentos Harrods – a seção de brinquedos fez-nos ter a idade de minha sobrinha de nove anos –, pegamos um táxi em direção ao hotel. Ao desembarcar, segurando sacolas e bolsas, deixei para trás justamente a única coisa que nunca, jamais, de forma alguma, pode ser extraviada numa viagem: o passaporte. Quando dei conta de que minha bolsa havia ficado no táxi, já era tarde e eu ingressava no pesadelo temido por todo turista que se desloca para outro país. Sem passaporte, você é ninguém e não consegue viajar de volta.

Não me considero muito materialista e já lidei bem com a perda de objetos pessoais de valor. Mas quando a matéria que se perde é um passaporte, confesso que não tive o mesmo otimismo daquelas situações, pois sabia exatamente as implicações da falta desse documento, principalmente em um país como o Reino Unido. Ainda restavam dois dias da viagem e um sentimento de impotência e fragilidade instalou-se em mim.

O primeiro dia do ano, que havia sido ensolarado e divertido, foi seguido por um nublado e chuvoso, típico de Londres. Pelo menos em relação ao clima, acordei londrino, com a mente turva e a chuviscar preocupações. Fui cedo ao local onde imaginei que meu problema seria resolvido: o Consulado Geral do Brasil em Londres. Tal era o meu desamparo que no caminho imaginei chegar lá e ser recebido, ou melhor, acolhido por compatriotas que iriam se compadecer do meu estado, sendo atenciosos e gentis. Deparei-me com uma enorme e antiga porta de madeira. Estava fechada. Haviam estendido o feriado de fim de ano e o consulado só abriria no dia seguinte, quando estava marcada minha passagem de volta.

Outra preocupação pendurou-se às demais: o tempo. Tirar outro passaporte é daquelas coisas que demandam documentos, carimbos, fotos, taxas, comprovante disso, daquilo. Providenciar tudo isso em um dia? Em outro país? Hum, o tempo só fechava na minha cabeça. Nuvens cobriam a alegria que normalmente me acompanha em viagens. Assim, nublado, providenciei os documentos que me informaram e retornei taciturno ao hotel. No outro dia, nosso voo de volta para Portugal sairia às 18:30h, num aeroporto distante uma hora e meia de Londres. Entre minhas preocupações, volta e meia trovejava insegurança e pessimismo.

Mas naquele dia, véspera de toda a minha empreitada para conseguir voltar pra casa, tínhamos um evento agendado e aguardado havia meses: assistir ao musical “O Rei Leão”. Claro que a presença da minha sobrinha influenciou a escolha de assistir a adaptação para o teatro do desenho animado da Disney, de 1994. Mas já foi o tempo em que animação ou musical infantil era coisa só pra criança. O premiado musical, com direção de Julie Taymor, estreou na Broadway em 1997 e desde então é um sucesso estrondoso. Além de Nova York e Londres, atualmente é encenado também na França, Japão, Países Baixos, Espanha e, em março de 2013, será a vez de São Paulo.

Prestes a completar vinte anos, a história do leãozinho Simba já entrou para o imaginário popular. A peça recria no palco sua comovente e ao mesmo tempo triste e divertida jornada desde o nascimento até a maturidade, quando então reassume suas responsabilidades como o novo rei. Apesar de já conhecermos bem a história, assisti-la ao vivo com atores a cantar e interpretar os bichos africanos – acompanhados por uma grande orquestra que executa, entre outras, músicas de Elton John – dá-nos outra experiência. A coisa é tão bem realizada que, quando a luz do teatro se apaga e o palco é preenchido por animais, músicas, cores e sons, revivemos tudo, agora com a alma elevada para patamares de sensibilidade não atingidos no cinema ou na tevê.

Além disso, olhar para o lado e ver no rosto das crianças e adultos a face da alegria e da emoção completa o quadro de comunhão e imersão na história genialmente concebida pelos estúdios Disney. O que se vê à frente é tudo mentira. É ficção, com humanos a interpretar bichos. Pode parecer sem sentido, mas a arte transformou aquele teatro do absurdo em sentimentos genuínos de compaixão, alegria e tristeza.  Identificamo-nos com a saga do leãozinho Simba, não por ele ser leão, nem por sua história ser inventada, mas por ela tocar nossa alma, naquilo que nos faz humanos.

Aquele teatro foi tão acolhedor como entrar numa banheira de água quente. Fez-me lembrar de Eça de Queiroz, em O Primo Basílio. Apesar do contexto absolutamente diverso, tive a sensação de me sentir “como um corpo ressequido que se estira num banho tépido”. Minhas preocupações consulares baixaram a guarda. Embarquei novamente na jornada de Simba e com ela reencontrei Timão e Pumba, um espirituoso suricato e um javali bonachão.

As lágrimas provocadas pela trágica morte do pai de Simba – encenada de forma tão terrível quanto no cinema – foram enxugadas com o riso causado pelos seus novos e irreverentes amigos que, quando o encontraram em frangalhos, trataram de reanimá-lo. Hakuna matata, era o que lhe diziam. Entre cantos, danças e presepadas, ensinaram-lhe o significado da expressão: sem preocupações! É o que Timão diz a Simba: “...você tem que deixar o seu passado para trás. Olha aqui, coisas ruins acontecem e você não pode fazer nada para evitar, certo?... Quando o mundo vira as costas para você, você vira as costas para o mundo. Talvez precise de uma nova lição. Repita comigo: hakuna matata”.

Antes de acusarem Timão e Pumba de corromper a jovem bicharada da savana com ideias subversivas e inconsequentes – Monteiro Lobato está no banco dos réus do STF por terem sido identificadas palavras “politicamente incorretas” em seus livros –, é preciso esclarecer: a nova lição não eximiu Simba das responsabilidades como futuro rei. Nem o transformou num leão vagabundo e boêmio. Serei o advogado de Timão e Pumba.  Naquelas condições, o jovem leão precisou desse ensinamento para se recuperar e posteriormente reaver o seu reino, usurpado pelo seu tio durante o período em que ficou sob a tutela de Timão e Pumba. Hakuna matata foi uma vivência, necessária para reerguer Simba, que se fragilizou diante do irremediável. Sem preocupações! Pelo menos por um tempo. Elas só turvam a mente, impedindo-nos de vislumbrar uma saída para os problemas, tornando-os maiores do que de fato são.

Por essas coincidências que a vida não explica, a lição de Timão e Pumba foi por mim revivida em circunstância oportuna. Saí do teatro com a alma leve e o coração tranquilo. Dormi o sono dos bichos, que acredito ser isento de preocupações futuras. Na manhã do dia seguinte, fui para a batalha reaver meu reino, quer dizer, meu passaporte. De volta ao consulado, deparei-me com uma enorme fila. Gente com horário agendado, pessoas na mesma condição que a minha; havia umas 50 pessoas na frente. Nada de ficar cabisbaixo, repetia mentalmente o mantra hakuna matata. E assim a fila foi andando, a mente se acalmando e por volta das 14:00h, após muita burocracia, 200 euros de taxa e a ajuda de uma alma caridosa que compreendeu minha situação urgentíssima, saí de lá com um novo passaporte.

Ao descer as escadas do consulado, com o passaporte na mão, senti a alegria de reconquistar um reino. Ao abrir a porta, Londres havia recuperado suas cores e eu a via agora, mesmo com chuva, como sempre ela foi para mim: monumental, vibrante e viva. Doravante, ela será também a cidade onde aprendi, que para o irremediável, o lema é hakuna matata! Caso contrário, o mundo não fica o mesmo quando dentro de nós tudo fica turvo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Crônica da indiferença(*)


Houve um tempo em que...
...ser escravo era diferente;
...ser protestante era diferente;
...ser mulher era diferente;
...ser negro era diferente;
...ser judeu era diferente;
...ser homossexual era diferente;
...ser diferente era não ser.
Haverá tempo para as diferenças?
Haverá tempo para a igualdade?
Haverá tempo?
 


(*) Para tempos em que se malafaia o diferente.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Hoje Coimbra, amanhã (meia) saudade




Coimbra, assim como Alegre - minha cidade natal -, é uma cidade universitária. A presença de estudantes, repúblicas, festas e, em alguns casos, certa delinquência juvenil, confere a essas cidades um ar especial. À sua história, aos seus habitantes, às suas casas e ruas acrescenta-se a energia de jovens que saíram de suas cidades, deixaram família e entes queridos para trás e foram estar ali alguns anos de suas vidas, com a expectativa de, por meio do estudo, ter um futuro melhor.

Tanta vitalidade juvenil reunida faz a vida em uma cidade universitária um tanto especial e complexa. Os seus habitantes, apesar do benéfico aquecimento da economia local, precisam desenvolver certa tolerância para com os comportamentos transgressores, impulsivos e etílicos dos jovens universitários. Para muitos é a primeira vez que sentem e vivenciam de fato o significado do sentimento de liberdade. Mas para os neófitos estudantes o processo, por razões obvias, torna-se mais doloroso. A vida já não tem aquele suporte até então imperceptível fornecido pela zona de conforto quentinha e aconchegante criada por pais e amigos. Ao transpor a fronteira dessa zona de conforto familiar, tudo passa a ser desafiador e de certa forma hostil.

Além disso, lidar com a ausência de pessoas e coisas pela primeira vez pode gerar desconfortos e saudades indizíveis. Fora o sabor da comidinha da mamãe, que fica latente na memória do desamparado estudante, aguardando as férias para novamente se revelar em profusão de sabores e afetos. Mas ao final, quando a cidade já não parece mais tão hostil e desconfortável, os “crescidos” estudantes são substituídos por novos e amedrontados jovens, que passarão pelo mesmo processo. As cidades universitárias, palcos desses intermináveis ciclos de crescimento pessoal e acadêmico, também crescem e se desenvolvem. Assim como uma família transforma-se com a chegada de filhos e netos, cidades transformam-se com a chegada de uma universidade. Pode-se até ter saudades do tempo em que tudo era tranquilo e sem algazarras. A rua estava em ordem e a casa arrumada. Contudo, ver as crianças/estudantes felizes e saudáveis a correr pela sala/rua é a felicidade de famílias e cidades universitárias.

Essa história de cidades receberem universidades começou há muito tempo. Na cultura ocidental, remonta à Antiguidade Clássica, quando na Grécia a “Academia” de Platão (387 a. C.) e o “Liceu” de Aristóteles (335 a. C.) eram os locais para onde jovens estudantes do mundo antigo iam ter aulas de filosofia e matemática com mestres do pensamento até hoje referenciados e revisitados. Não é sem propósito que se diz que Platão e Aristóteles, em suas incipientes “universidades”, estabeleceram as bases do pensamento que permitem, ainda hoje, compreender o mundo em que vivemos. Na árvore genealógica das cidades universitárias, Atenas é a mãe de todas elas.

Mas é no final do século XI, após um longo período durante a Idade Média – em que o saber ocidental permanecera intocado e “guardado” nos mosteiros católicos – que o surgimento de universidades na Europa começa a estender a possibilidade de acesso ao conhecimento clássico (grego e romano), bem como ao ainda incipiente conhecimento científico, para além dos membros do clero. Começava-se o processo de universalização do saber. E assim, na cidade italiana de Bolonha, no ano de 1088, funda-se a primeira universidade europeia, destinada inicialmente aos estudos de teologia, filosofia e direito canônico. A partir daí, as universidades multiplicaram-se pela Europa e pelo mundo: Paris, Oxford, Cambridge, Salamanca...; e, em 1290, seria então criada a Universidade de Coimbra, a primeira de Portugal. Alguns séculos depois foi a vez de Alegre, que em 1977 passa a abrigar o então Centro Agropecuário da Universidade Federal do Espírito Santo – CAUFES (hoje, Centro de Ciências Agrárias da UFES).

Muitas experiências podem ser vivenciadas em uma cidade universitária. Aqui em Coimbra, vivencio esse processo que, apesar de doloroso, traz-me um crescimento pessoal e acadêmico que percebo aumentar com passar dos dias e meses. Mas uma experiência em especial é comum a todos os estudantes que se dirigem a uma cidade universitária: a experiência da saudade. Vivê-la aqui em Coimbra é ainda mais peculiar.

Primeiro, porque, como falante da Língua Portuguesa, tenho o privilégio de poder expressar esse sentimento por meio de uma palavra que só existe nesse idioma. “Saudade” não tem tradução em outras línguas. Se eu quisesse explicar a um inglês o significado de “saudade” (o dicionário descreve-a como “lembrança grata de pessoa ausente ou de alguma coisa de que alguém se vê privado”), teria que recorrer a um verbo (to miss) e não a um substantivo, inexistente naquele idioma. Em Português, saudade tem existência. É sentida concretamente no peito de quem fica ou de quem parte. Os portugueses sentem-na desde quando começaram a lançar-se ao mar, deixando tudo para traz em busca de um mundo novo. Era preciso dar nome a isso que se sentia, que apertava no coração tanto dos que partiam como dos que ficavam. A glória das “Grandes Navegações” iniciadas no século XV deixou a marca da saudade no coração dos portugueses.

Segundo, porque Coimbra é uma cidade encantadora. Integrar-se à sua história e à sua cultura é uma tarefa inicialmente dolorosa, pois a saudade dos que ficaram ainda bate forte no peito. Mas com a vivência dos dias e meses, a cidade, com seus encantos, ruas e prédios cheios de história, torna-se o espaço de uma nova vida. Uma vida que se vive entre a saudade daqueles que estão distantes e a paixão que só faz aumentar por tudo que aqui se vê e se sente. Uma vida em que o autoconhecimento desvela os véus da ignorância de si mesmo, revelando e genuinidade escondida sob os rótulos e preconceitos cotidianos. Depois de tempo, não se sabe mais quem é o estrangeiro, se você ou se a cidade.

Para cá vieram muitos brasileiros. Notáveis brasileiros, como o poeta Gonçalves Dias, cuja saudade extrapolou o peito e pousou no papel. Escreveu entre os muros da Universidade de Coimbra a “Canção do Exílio”, uma ode à sua distante terra natal. Uma terra de palmeiras “onde canta o sabiá”.

Após um ano aqui em Coimbra, recentemente fui passar férias no Brasil. No dia 17 de julho deste ano regressei para uma temporada de dois meses. Nesse dia senti um misto de alegria por regressar e melancolia por partir. Eu estava partido, dividido. Como que uma profecia a se cumprir, senti no peito a letra do belíssimo fado acadêmico-conimbricense: “Coimbra tem mais encantos, na hora da despedida”. Desde que aqui cheguei também ouço outra frase, que vi escrita num dos muros da cidade: “Hoje Coimbra, amanhã saudade”. Naquele dia, meu coração desejou sentir apenas “meia saudade”.


meia saudade

a parte partida que parte
disse à que fica
em despedida
que sentirá meia saudade

antes de formar o inteiro
partilhavam o vazio
mas a cidade juntou o imperfeito
e fez surgir um amor estrangeiro

a parte partida que fica
doravante, sempre aguardará a outra
para juntas, bifronte, jamais sentirem
a dor da inteira saudade na despedida

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Final mund(ano); hum(ano) novo


Sobrevivemos à previsão de mais um apocalipse. Nem sempre tão preciso em seus prognósticos anteriores, Nostradamus cedeu seu lugar de profeta apocalíptico para uma civilização pré-colombiana da qual o Velho Mundo só tomou conhecimento graças a Colombo e sua trupe de saqueadores do Novo Mundo. Também por conta disso, quase nada sobrou da civilização maia.

Certamente muitos neste mundo nem sabem quem foram os Maias, mas a previsão mal interpretada e descontextualizada do fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012 ganhou projeção incomum. O assunto reacendeu a velha e cansada discussão sobre o fim dos tempos. De uma civilização que nos legou uma complexa cultura, manifestada por sua escrita, arte, religião, matemática e astronomia – notáveis em razão de seu isolamento no continente americano –, deu-se destaque mundial a um calendário que supostamente previa o fim do mundo.

Mas estudiosos da cultura maia afirmam que o calendário, na verdade, previa o fim de um ciclo e o início de uma nova era, algo comum nas civilizações antigas. Não por coincidência, 21 de dezembro é a data de um solstício, ou seja, quando, dependendo do hemisfério da Terra, começa o verão ou o inverno. Além disso, nenhuma outra hecatombe ou meteoro gigante vindo em nossa direção estavam previstos pela ciência para aquela data. A crendice competindo diretamente com a ciência revela ares medievais na pós-Modernidade. Nada de fim do mundo, apenas a História se repetindo, repetindo, repetindo...

Se lançarmos os olhos para o rastro de nossa História, percebemos outras previsões dessa natureza. Diante de contextos de guerras frias, quentes ou atômicas, sempre houve quem anunciasse “o fim da odisseia humana na Terra”, pois se acreditava que o mundo realmente merecia acabar. Ficara mundano demais ou se distanciara dos desígnios divinos. Nessas épocas, nunca faltaram oportunistas fundamentalistas para proclamar que era chegada a hora do juízo final. Até hoje assistimos, incrédulos, a grupos que se isolam em templos ou bunkers aguardando o fim do mundo. Uns estocam comida, outros cometem suicídio coletivo. A histeria contagia os que não estão preparados para o recomeço, para uma nova vida, para uma nova era. Seja neste ou noutro mundo.

O tema é tão caro à imaginação humana que, previsto ou não, o fim apoteótico do mundo movimenta as artes. Dos filmes catástrofes às letras de canção, inquieta-nos saber sobre nosso comportamento diante do fim iminente ou sobre o que virá depois. Morremos de medo de ter o mesmo fim dos dinossauros. Um meteoro ou um ataque alienígena destruindo a Terra: sim, há vários filmes com esse enredo. Nosso complexo de dinossauro rende pirotecnias cinematográficas, talvez visualmente interessantes, mas quase sempre pateticamente concebidos. Conheço uma exceção: “Melancolia”, de Lars von Trier. Diante do mesmo argumento – de um meteoro prestes a colidir e destruir com a Terra – acompanhamos os últimos dias de duas irmãs. Justine não se adapta às regras sociais, desiste do casamento no dia da festa e sofre de profundas crises de depressão. Claire é mãe, muito “bem casada” e ama a confortável vida que leva em uma pacata cidade do interior. A libertação de uma e o apocalipse mental da outra mostram um fim do mundo subjetivo e, por conta disso, mais complexo e interessante.

As conjecturas musicais acerca do fim do mundo costumam ser mais sutis. O apelo visual é compensado por canções que recorrem a letras metafóricas e a inventivos acordes e melodias. Lembro-me de dois exemplos pitorescos que brincam e nos fazem refletir sobre o armagedom. Assuntos sérios podem render humoradas reflexões.

Em 1938 o compositor carioca José de Assis Valente (1911-1958) compôs a canção “E o mundo não se acabou”. Naquele ano o mundo preparava-se para entrar nas trevas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Sem ter ainda a exata noção do eclipse para o qual se encaminhava a humanidade, a sensibilidade do artista colocava a questão, cantada por intérpretes do quilate de Marlene e Carmem Miranda. Aos meus ouvidos a canção chegou por meio da interpretação de Adriana Calcanhoto: “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar...”.

Angustiado, desiludido, e de certa forma liberto das convenções e limitações morais, o compositor desabafa: “Acreditei nessa conversa mole, achei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir e sem demora fui tratando de aproveitar / Beijei a boca de quem não devia / Peguei na mão de quem não conhecia / Dancei um samba em traje de maiô / E o tal do mundo não se acabou”. Pobre do Assis Valente, que não honrou seu sobrenome e decidiu acabar com o seu próprio mundo em 1958. Suicidou-se em razão de dívidas. Imortalizou-se pela música.

Outra canção sobre o apocalipse é recente. Trata-se da conhecida composição de Paulinho Moska, “O último dia”, de 1995. Aqui o contexto é de término da Guerra Fria. O mundo vivera bastantes anos sob a ameaça de se acabar de um dia para o outro. Com potencial atômico para tal – “A Rosa de Hiroshima” havia deixado seu perfume fétido pelo mundo –, desde o término da Segunda Guerra Mundial até a queda do Muro de Berlim, em 1989, vivia-se o medo do tênue desequilíbrio entre as duas grandes potências mundiais, a então URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e os EUA. Sem nunca se enfrentarem diretamente, temia-se que uma delas apertasse um simples botão, para que ogivas nucleares e mísseis atacassem a outra. O problema é que essa não era uma guerra interplanetária. Se a guerra esquentasse de fato, talvez houvesse poucos sobreviventes neste planeta.

Como um sobrevivente desta “guerra”, Paulinho Moska poeticamente pergunta: “Meu amor, o que você faria se só te restasse um dia? / Se o mundo fosse acabar / Me diz o que você faria”. Assim como Valente, Moska voa na imaginação e liberta-se moralmente: “Andava pelado na chuva / Corria no meio da rua / Entrava de roupa no mar / Trepava sem camisinha... / Abria a porta do hospício / Trancava a da delegacia”. Mas a comparação entre os compositores para por aí. Paulinho Moska aguentou firme seus fantasmas e angústias e continua, assim como nosso mundo, testemunhando a sucessão de dias e noites.

Vencida mais uma previsão do fim da Terra, esta, como disse Caetano Veloso, continua a viagem “que realizas do nada, através do qual carregas o nome da sua carne”. Quem sabe um dia a viagem se interrompa. A cena clássica de um meteoro vir na nossa direção e acabar com tudo tem impacto e apelo popular. Mas diante do que temos feito ao nosso planeta talvez não tenhamos a “sorte” dos dinossauros. A continuar assim, o fim do mundo muito provavelmente não será instantâneo, mas longo e doloroso. A imagem da destruição apocalíptica bem que poderia ser substituída pela de um mundo-UTI, na qual seremos todos pacientes terminais, doentes de corpo e de alma, sedentos de água, compaixão e fé.

Mas tudo isso são confabulações, filmes e canções. Por esses dias o que acabou mesmo foi o ano. Como milhares de outros astros e planetas, começamos outro ciclo de uma volta ao redor do sol. E com ele, os humanos que vivem neste minúsculo planeta igualmente se repetem. Promessas, planos, dietas; tudo muito firme nos primeiros dias, mas ao longo do novo ciclo anual, muito terá se perdido na poeira cósmica de nossas existências.

Mas não sejamos tão rigorosos, somos hum(anos), falíveis, imperfeitos. Imperdoável mesmo é não (ao menos tentar) cuidar de nós mesmos, dos outros, do nosso mundo, da nossa cidade, da nossa rua, da nossa casa. Perante uma vida mutável e dinâmica, inconcebível é ficarmos parados, como disse Raul Seixas, sentados no “trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Ou assistirmos passivos à sucessão de mais um ano, dentro do aconchegante espectro de prazeres e afazeres cotidianos. Para quem permanece o mesmo e não deseja a mudança, o mundo não precisa de previsões apocalípticas. O que não muda já chegou ao seu fim.

Mas se você não chegou ao seu fim, boa viagem! Que a próxima jornada ao redor do astro rei seja da realização de um hum(ano) novo, melhor e atento às necessárias mudanças, pessoais e mundanas. Neste novo ciclo, resta-nos o mundo todo pela frente. Até que um crepuscular meteoro nos acerte e leve nossas almas, uma a uma e no seu devido tempo, para outro mundo. Mas essa já é outra história, para um tempo, torçamos, bem distante de 2013.


Faixa bônus:
vídeos das canções citadas no texto e o trailer do filme Melancolia.