Coimbra, assim como Alegre - minha cidade natal -, é uma cidade
universitária. A presença de estudantes, repúblicas, festas e, em alguns casos,
certa delinquência juvenil, confere a essas cidades um ar especial. À sua
história, aos seus habitantes, às suas casas e ruas acrescenta-se a energia de
jovens que saíram de suas cidades, deixaram família e entes queridos para trás
e foram estar ali alguns anos de suas vidas, com a expectativa de, por meio do
estudo, ter um futuro melhor.
Tanta vitalidade juvenil reunida faz a vida
em uma cidade universitária um tanto especial e complexa. Os seus habitantes,
apesar do benéfico aquecimento da economia local, precisam desenvolver certa
tolerância para com os comportamentos transgressores, impulsivos e etílicos dos
jovens universitários. Para muitos é a primeira vez que sentem e vivenciam de
fato o significado do sentimento de liberdade. Mas para os neófitos estudantes
o processo, por razões obvias, torna-se mais doloroso. A vida já não tem aquele
suporte até então imperceptível fornecido pela zona de conforto quentinha e
aconchegante criada por pais e amigos. Ao transpor a fronteira dessa zona de
conforto familiar, tudo passa a ser desafiador e de certa forma hostil.
Além disso, lidar com a ausência de pessoas e
coisas pela primeira vez pode gerar desconfortos e saudades indizíveis. Fora o
sabor da comidinha da mamãe, que fica latente na memória do desamparado
estudante, aguardando as férias para novamente se revelar em profusão de
sabores e afetos. Mas ao final, quando a cidade já não parece mais tão hostil e
desconfortável, os “crescidos” estudantes são substituídos por novos e
amedrontados jovens, que passarão pelo mesmo processo. As cidades
universitárias, palcos desses intermináveis ciclos de crescimento pessoal e
acadêmico, também crescem e se desenvolvem. Assim como uma família
transforma-se com a chegada de filhos e netos, cidades transformam-se com a
chegada de uma universidade. Pode-se até ter saudades do tempo em que tudo era
tranquilo e sem algazarras. A rua estava em ordem e a casa arrumada. Contudo,
ver as crianças/estudantes felizes e saudáveis a correr pela sala/rua é a
felicidade de famílias e cidades universitárias.
Essa história de cidades receberem
universidades começou há muito tempo. Na cultura ocidental, remonta à
Antiguidade Clássica, quando na Grécia a “Academia” de Platão (387 a. C.) e o
“Liceu” de Aristóteles (335 a. C.) eram os locais para onde jovens estudantes
do mundo antigo iam ter aulas de filosofia e matemática com mestres do pensamento
até hoje referenciados e revisitados. Não é sem propósito que se diz que Platão
e Aristóteles, em suas incipientes “universidades”, estabeleceram as bases do
pensamento que permitem, ainda hoje, compreender o mundo em que vivemos. Na
árvore genealógica das cidades universitárias, Atenas é a mãe de todas elas.
Mas é no final do século XI, após um longo
período durante a Idade Média – em que o saber ocidental permanecera intocado e
“guardado” nos mosteiros católicos – que o surgimento de universidades na
Europa começa a estender a possibilidade de acesso ao conhecimento clássico
(grego e romano), bem como ao ainda incipiente conhecimento científico, para
além dos membros do clero. Começava-se o processo de universalização do saber.
E assim, na cidade italiana de Bolonha, no ano de 1088, funda-se a primeira
universidade europeia, destinada inicialmente aos estudos de teologia,
filosofia e direito canônico. A partir daí, as universidades multiplicaram-se
pela Europa e pelo mundo: Paris, Oxford, Cambridge, Salamanca...; e, em 1290,
seria então criada a Universidade de Coimbra, a primeira de Portugal. Alguns
séculos depois foi a vez de Alegre, que em 1977 passa a abrigar o então Centro
Agropecuário da Universidade Federal do Espírito Santo – CAUFES (hoje, Centro
de Ciências Agrárias da UFES).
Muitas experiências podem ser vivenciadas em
uma cidade universitária. Aqui em Coimbra, vivencio esse processo que, apesar
de doloroso, traz-me um crescimento pessoal e acadêmico que percebo aumentar
com passar dos dias e meses. Mas uma experiência em especial é comum a todos os
estudantes que se dirigem a uma cidade universitária: a experiência da saudade.
Vivê-la aqui em Coimbra é ainda mais peculiar.
Primeiro, porque, como falante da Língua
Portuguesa, tenho o privilégio de poder expressar esse sentimento por meio de uma
palavra que só existe nesse idioma. “Saudade” não tem tradução em outras
línguas. Se eu quisesse explicar a um inglês o significado de “saudade” (o
dicionário descreve-a como “lembrança grata de pessoa ausente ou de alguma
coisa de que alguém se vê privado”), teria que recorrer a um verbo (to miss) e não a um substantivo,
inexistente naquele idioma. Em Português, saudade tem existência. É sentida
concretamente no peito de quem fica ou de quem parte. Os portugueses sentem-na
desde quando começaram a lançar-se ao mar, deixando tudo para traz em busca de
um mundo novo. Era preciso dar nome a isso que se sentia, que apertava no
coração tanto dos que partiam como dos que ficavam. A glória das “Grandes Navegações”
iniciadas no século XV deixou a marca da saudade no coração dos portugueses.
Segundo, porque Coimbra é uma cidade
encantadora. Integrar-se à sua história e à sua cultura é uma tarefa
inicialmente dolorosa, pois a saudade dos que ficaram ainda bate forte no
peito. Mas com a vivência dos dias e meses, a cidade, com seus encantos, ruas e
prédios cheios de história, torna-se o espaço de uma nova vida. Uma vida que se
vive entre a saudade daqueles que estão distantes e a paixão que só faz
aumentar por tudo que aqui se vê e se sente. Uma vida em que o autoconhecimento
desvela os véus da ignorância de si mesmo, revelando e genuinidade escondida
sob os rótulos e preconceitos cotidianos. Depois de tempo, não se sabe mais
quem é o estrangeiro, se você ou se a cidade.
Para cá vieram muitos brasileiros. Notáveis
brasileiros, como o poeta Gonçalves Dias, cuja saudade extrapolou o peito e
pousou no papel. Escreveu entre os muros da Universidade de Coimbra a “Canção
do Exílio”, uma ode à sua distante terra natal. Uma terra de palmeiras “onde
canta o sabiá”.
Após um ano aqui em Coimbra, recentemente fui
passar férias no Brasil. No dia 17 de julho deste ano regressei para uma
temporada de dois meses. Nesse dia senti um misto de alegria por regressar e
melancolia por partir. Eu estava partido, dividido. Como que uma profecia a se
cumprir, senti no peito a letra do belíssimo fado acadêmico-conimbricense:
“Coimbra tem mais encantos, na hora da despedida”. Desde que aqui cheguei também
ouço outra frase, que vi escrita num dos muros da cidade: “Hoje Coimbra, amanhã
saudade”. Naquele dia, meu coração desejou sentir apenas “meia saudade”.
meia
saudade
a
parte partida que parte
disse
à que fica
em
despedida
que
sentirá meia saudade
antes
de formar o inteiro
partilhavam
o vazio
mas
a cidade juntou o imperfeito
e
fez surgir um amor estrangeiro
a
parte partida que fica
doravante,
sempre aguardará a outra
para
juntas, bifronte, jamais sentirem
a
dor da inteira saudade na despedida
Silvagner,
ResponderExcluirAcredito que sabe viver cada metade em sua plenitude.
Isso seria impossível, se nossa vida fosse um inteiro, mas não é.
Por isso vive-se cada parte a cada hora, depois junta e vira uma vida.
No relato, a sua, que ilustra cada estudante.
O que você escreveu é lindo e verdadeiro.
Parabéns.
Abraços.
Sueli