sábado, 2 de fevereiro de 2013

Hoje Coimbra, amanhã (meia) saudade




Coimbra, assim como Alegre - minha cidade natal -, é uma cidade universitária. A presença de estudantes, repúblicas, festas e, em alguns casos, certa delinquência juvenil, confere a essas cidades um ar especial. À sua história, aos seus habitantes, às suas casas e ruas acrescenta-se a energia de jovens que saíram de suas cidades, deixaram família e entes queridos para trás e foram estar ali alguns anos de suas vidas, com a expectativa de, por meio do estudo, ter um futuro melhor.

Tanta vitalidade juvenil reunida faz a vida em uma cidade universitária um tanto especial e complexa. Os seus habitantes, apesar do benéfico aquecimento da economia local, precisam desenvolver certa tolerância para com os comportamentos transgressores, impulsivos e etílicos dos jovens universitários. Para muitos é a primeira vez que sentem e vivenciam de fato o significado do sentimento de liberdade. Mas para os neófitos estudantes o processo, por razões obvias, torna-se mais doloroso. A vida já não tem aquele suporte até então imperceptível fornecido pela zona de conforto quentinha e aconchegante criada por pais e amigos. Ao transpor a fronteira dessa zona de conforto familiar, tudo passa a ser desafiador e de certa forma hostil.

Além disso, lidar com a ausência de pessoas e coisas pela primeira vez pode gerar desconfortos e saudades indizíveis. Fora o sabor da comidinha da mamãe, que fica latente na memória do desamparado estudante, aguardando as férias para novamente se revelar em profusão de sabores e afetos. Mas ao final, quando a cidade já não parece mais tão hostil e desconfortável, os “crescidos” estudantes são substituídos por novos e amedrontados jovens, que passarão pelo mesmo processo. As cidades universitárias, palcos desses intermináveis ciclos de crescimento pessoal e acadêmico, também crescem e se desenvolvem. Assim como uma família transforma-se com a chegada de filhos e netos, cidades transformam-se com a chegada de uma universidade. Pode-se até ter saudades do tempo em que tudo era tranquilo e sem algazarras. A rua estava em ordem e a casa arrumada. Contudo, ver as crianças/estudantes felizes e saudáveis a correr pela sala/rua é a felicidade de famílias e cidades universitárias.

Essa história de cidades receberem universidades começou há muito tempo. Na cultura ocidental, remonta à Antiguidade Clássica, quando na Grécia a “Academia” de Platão (387 a. C.) e o “Liceu” de Aristóteles (335 a. C.) eram os locais para onde jovens estudantes do mundo antigo iam ter aulas de filosofia e matemática com mestres do pensamento até hoje referenciados e revisitados. Não é sem propósito que se diz que Platão e Aristóteles, em suas incipientes “universidades”, estabeleceram as bases do pensamento que permitem, ainda hoje, compreender o mundo em que vivemos. Na árvore genealógica das cidades universitárias, Atenas é a mãe de todas elas.

Mas é no final do século XI, após um longo período durante a Idade Média – em que o saber ocidental permanecera intocado e “guardado” nos mosteiros católicos – que o surgimento de universidades na Europa começa a estender a possibilidade de acesso ao conhecimento clássico (grego e romano), bem como ao ainda incipiente conhecimento científico, para além dos membros do clero. Começava-se o processo de universalização do saber. E assim, na cidade italiana de Bolonha, no ano de 1088, funda-se a primeira universidade europeia, destinada inicialmente aos estudos de teologia, filosofia e direito canônico. A partir daí, as universidades multiplicaram-se pela Europa e pelo mundo: Paris, Oxford, Cambridge, Salamanca...; e, em 1290, seria então criada a Universidade de Coimbra, a primeira de Portugal. Alguns séculos depois foi a vez de Alegre, que em 1977 passa a abrigar o então Centro Agropecuário da Universidade Federal do Espírito Santo – CAUFES (hoje, Centro de Ciências Agrárias da UFES).

Muitas experiências podem ser vivenciadas em uma cidade universitária. Aqui em Coimbra, vivencio esse processo que, apesar de doloroso, traz-me um crescimento pessoal e acadêmico que percebo aumentar com passar dos dias e meses. Mas uma experiência em especial é comum a todos os estudantes que se dirigem a uma cidade universitária: a experiência da saudade. Vivê-la aqui em Coimbra é ainda mais peculiar.

Primeiro, porque, como falante da Língua Portuguesa, tenho o privilégio de poder expressar esse sentimento por meio de uma palavra que só existe nesse idioma. “Saudade” não tem tradução em outras línguas. Se eu quisesse explicar a um inglês o significado de “saudade” (o dicionário descreve-a como “lembrança grata de pessoa ausente ou de alguma coisa de que alguém se vê privado”), teria que recorrer a um verbo (to miss) e não a um substantivo, inexistente naquele idioma. Em Português, saudade tem existência. É sentida concretamente no peito de quem fica ou de quem parte. Os portugueses sentem-na desde quando começaram a lançar-se ao mar, deixando tudo para traz em busca de um mundo novo. Era preciso dar nome a isso que se sentia, que apertava no coração tanto dos que partiam como dos que ficavam. A glória das “Grandes Navegações” iniciadas no século XV deixou a marca da saudade no coração dos portugueses.

Segundo, porque Coimbra é uma cidade encantadora. Integrar-se à sua história e à sua cultura é uma tarefa inicialmente dolorosa, pois a saudade dos que ficaram ainda bate forte no peito. Mas com a vivência dos dias e meses, a cidade, com seus encantos, ruas e prédios cheios de história, torna-se o espaço de uma nova vida. Uma vida que se vive entre a saudade daqueles que estão distantes e a paixão que só faz aumentar por tudo que aqui se vê e se sente. Uma vida em que o autoconhecimento desvela os véus da ignorância de si mesmo, revelando e genuinidade escondida sob os rótulos e preconceitos cotidianos. Depois de tempo, não se sabe mais quem é o estrangeiro, se você ou se a cidade.

Para cá vieram muitos brasileiros. Notáveis brasileiros, como o poeta Gonçalves Dias, cuja saudade extrapolou o peito e pousou no papel. Escreveu entre os muros da Universidade de Coimbra a “Canção do Exílio”, uma ode à sua distante terra natal. Uma terra de palmeiras “onde canta o sabiá”.

Após um ano aqui em Coimbra, recentemente fui passar férias no Brasil. No dia 17 de julho deste ano regressei para uma temporada de dois meses. Nesse dia senti um misto de alegria por regressar e melancolia por partir. Eu estava partido, dividido. Como que uma profecia a se cumprir, senti no peito a letra do belíssimo fado acadêmico-conimbricense: “Coimbra tem mais encantos, na hora da despedida”. Desde que aqui cheguei também ouço outra frase, que vi escrita num dos muros da cidade: “Hoje Coimbra, amanhã saudade”. Naquele dia, meu coração desejou sentir apenas “meia saudade”.


meia saudade

a parte partida que parte
disse à que fica
em despedida
que sentirá meia saudade

antes de formar o inteiro
partilhavam o vazio
mas a cidade juntou o imperfeito
e fez surgir um amor estrangeiro

a parte partida que fica
doravante, sempre aguardará a outra
para juntas, bifronte, jamais sentirem
a dor da inteira saudade na despedida

Um comentário:

  1. Silvagner,

    Acredito que sabe viver cada metade em sua plenitude.
    Isso seria impossível, se nossa vida fosse um inteiro, mas não é.
    Por isso vive-se cada parte a cada hora, depois junta e vira uma vida.
    No relato, a sua, que ilustra cada estudante.
    O que você escreveu é lindo e verdadeiro.
    Parabéns.
    Abraços.
    Sueli

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