Londres é dessas cidades para se embasbacar.
Basta caminhar por suas ruas e parques, deslumbrando-se com a imponência e
beleza de edifícios, palácios e monumentos – admiravelmente conservados até
hoje –, para sentir a riqueza de sua vida social e multicultural. Nota-se uma
cidade de singularidades das quais os londrinos são orgulhosos e fazem questão
de manter: ônibus vermelhos de dois andares, táxis pretos, sistema de metrô
sesquicentenário, carros e ruas com mão de direção contrária, moeda exclusiva, polícia
dos bobbies, dias cinzentos e
nublados; tudo isso e muito mais – que à primeira vista pode soar arrogante,
mas a educação e o bom humor dos ingleses desfazem essa suposição – integram o
patrimônio cultural de uma cidade e de um país separados do continente europeu
por apenas alguns quilômetros do Canal da Mancha.
Há alguns dias pulei para o lado de lá
da Mancha e, junto de minha irmã, cunhado e sobrinha, fomos passar o réveillon
na capital do Reino Unido. Obviamente, três dias foram poucos para mostrar-lhes
o que havia me fascinado em minhas outras viagens àquela cidade. Além disso, os
gostos diferem e não desejaria enfiá-los em museus, galerias de arte e
livrarias; nem cansá-los com longas caminhadas por parques e ruas, um prazer gratuito
que cultivo quando estou em cidades como Londres. Achei de bom tom
acompanhá-los pelos interesses demonstrados, que também me apeteceram. Gostaram
de tudo, com ressalva ao exorbitante custo de vida que, mesmo para um turista
de poucos dias, causa rombos orçamentários limitadores de uma estadia mais
prolongada. Pelo menos para nós, meros assalariados, que juntamos uns suados trocados
para testemunhar o que o dinheiro fez e faz daquela cidade.
Tudo ia muito bem, e a cidade já os
encantava igualmente. Mas meu primeiro dia do ano reservou-me uma surpresa
daquelas. Após um cansativo e prazeroso dia de passeios, e da inacreditável
visita pelos andares da centenária loja de departamentos Harrods – a seção de brinquedos fez-nos ter a idade de minha
sobrinha de nove anos –, pegamos um táxi em direção ao hotel. Ao desembarcar, segurando
sacolas e bolsas, deixei para trás justamente a única coisa que nunca, jamais,
de forma alguma, pode ser extraviada numa viagem: o passaporte. Quando dei
conta de que minha bolsa havia ficado no táxi, já era tarde e eu ingressava no
pesadelo temido por todo turista que se desloca para outro país. Sem passaporte,
você é ninguém e não consegue viajar de volta.
Não me considero muito materialista e já
lidei bem com a perda de objetos pessoais de valor. Mas quando a matéria que se
perde é um passaporte, confesso que não tive o mesmo otimismo daquelas
situações, pois sabia exatamente as implicações da falta desse documento,
principalmente em um país como o Reino Unido. Ainda restavam dois dias da
viagem e um sentimento de impotência e fragilidade instalou-se em mim.
O primeiro dia do ano, que havia sido
ensolarado e divertido, foi seguido por um nublado e chuvoso, típico de Londres.
Pelo menos em relação ao clima, acordei londrino, com a mente turva e a
chuviscar preocupações. Fui cedo ao local onde imaginei que meu problema seria
resolvido: o Consulado Geral do Brasil em Londres. Tal era o meu desamparo que
no caminho imaginei chegar lá e ser recebido, ou melhor, acolhido por
compatriotas que iriam se compadecer do meu estado, sendo atenciosos e gentis.
Deparei-me com uma enorme e antiga porta de madeira. Estava fechada. Haviam
estendido o feriado de fim de ano e o consulado só abriria no dia seguinte,
quando estava marcada minha passagem de volta.
Outra preocupação pendurou-se às demais:
o tempo. Tirar outro passaporte é daquelas coisas que demandam documentos, carimbos,
fotos, taxas, comprovante disso, daquilo. Providenciar tudo isso em um dia? Em
outro país? Hum, o tempo só fechava na minha cabeça. Nuvens cobriam a alegria
que normalmente me acompanha em viagens. Assim, nublado, providenciei os
documentos que me informaram e retornei taciturno ao hotel. No outro dia, nosso
voo de volta para Portugal sairia às 18:30h, num aeroporto distante uma hora e
meia de Londres. Entre minhas preocupações, volta e meia trovejava insegurança
e pessimismo.
Mas naquele dia, véspera de toda a minha
empreitada para conseguir voltar pra casa, tínhamos um evento agendado e
aguardado havia meses: assistir ao musical “O Rei Leão”. Claro que a presença
da minha sobrinha influenciou a escolha de assistir a adaptação para o teatro
do desenho animado da Disney, de 1994. Mas já foi o tempo em que animação ou
musical infantil era coisa só pra criança. O premiado musical, com direção de
Julie Taymor, estreou na Broadway em 1997 e desde então é um sucesso estrondoso.
Além de Nova York e Londres, atualmente é encenado também na França, Japão,
Países Baixos, Espanha e, em março de 2013, será a vez de São Paulo.
Prestes a completar vinte anos, a história
do leãozinho Simba já entrou para o imaginário popular. A peça recria no palco
sua comovente e ao mesmo tempo triste e divertida jornada desde o nascimento
até a maturidade, quando então reassume suas responsabilidades como o novo rei.
Apesar de já conhecermos bem a história, assisti-la ao vivo com atores a cantar
e interpretar os bichos africanos – acompanhados por uma grande orquestra que
executa, entre outras, músicas de Elton John – dá-nos outra experiência. A
coisa é tão bem realizada que, quando a luz do teatro se apaga e o palco é preenchido
por animais, músicas, cores e sons, revivemos tudo, agora com a alma elevada
para patamares de sensibilidade não atingidos no cinema ou na tevê.
Além disso, olhar para o lado e ver no
rosto das crianças e adultos a face da alegria e da emoção completa o quadro de
comunhão e imersão na história genialmente concebida pelos estúdios Disney. O
que se vê à frente é tudo mentira. É ficção, com humanos a interpretar bichos.
Pode parecer sem sentido, mas a arte transformou aquele teatro do absurdo em
sentimentos genuínos de compaixão, alegria e tristeza. Identificamo-nos com a saga do leãozinho
Simba, não por ele ser leão, nem por sua história ser inventada, mas por ela
tocar nossa alma, naquilo que nos faz humanos.
Aquele teatro foi tão acolhedor como
entrar numa banheira de água quente. Fez-me lembrar de Eça de Queiroz, em O
Primo Basílio. Apesar do contexto absolutamente diverso, tive a sensação de me
sentir “como um corpo ressequido que se estira num banho tépido”. Minhas preocupações
consulares baixaram a guarda. Embarquei novamente na jornada de Simba e com ela
reencontrei Timão e Pumba, um espirituoso suricato e um javali bonachão.
As lágrimas provocadas pela trágica
morte do pai de Simba – encenada de forma tão terrível quanto no cinema – foram
enxugadas com o riso causado pelos seus novos e irreverentes amigos que, quando
o encontraram em frangalhos, trataram de reanimá-lo. Hakuna matata, era o que lhe diziam. Entre cantos, danças e
presepadas, ensinaram-lhe o significado da expressão: sem preocupações! É o que
Timão diz a Simba: “...você tem que deixar o seu passado para trás. Olha aqui,
coisas ruins acontecem e você não pode fazer nada para evitar, certo?... Quando
o mundo vira as costas para você, você vira as costas para o mundo. Talvez
precise de uma nova lição. Repita comigo: hakuna
matata”.
Antes de acusarem Timão e Pumba de
corromper a jovem bicharada da savana com ideias subversivas e inconsequentes –
Monteiro Lobato está no banco dos réus do STF por terem sido identificadas palavras
“politicamente incorretas” em seus livros –, é preciso esclarecer: a nova lição
não eximiu Simba das responsabilidades como futuro rei. Nem o transformou num
leão vagabundo e boêmio. Serei o advogado de Timão e Pumba. Naquelas condições, o jovem leão precisou
desse ensinamento para se recuperar e posteriormente reaver o seu reino,
usurpado pelo seu tio durante o período em que ficou sob a tutela de Timão e
Pumba. Hakuna matata foi uma
vivência, necessária para reerguer Simba, que se fragilizou diante do
irremediável. Sem preocupações! Pelo menos por um tempo. Elas só turvam a mente,
impedindo-nos de vislumbrar uma saída para os problemas, tornando-os maiores do
que de fato são.
Por essas coincidências que a vida não
explica, a lição de Timão e Pumba foi por mim revivida em circunstância
oportuna. Saí do teatro com a alma leve e o coração tranquilo. Dormi o sono dos
bichos, que acredito ser isento de preocupações futuras. Na manhã do dia
seguinte, fui para a batalha reaver meu reino, quer dizer, meu passaporte. De
volta ao consulado, deparei-me com uma enorme fila. Gente com horário agendado,
pessoas na mesma condição que a minha; havia umas 50 pessoas na frente. Nada de
ficar cabisbaixo, repetia mentalmente o mantra hakuna matata. E assim a fila foi andando, a mente se acalmando e
por volta das 14:00h, após muita burocracia, 200 euros de taxa e a ajuda de uma
alma caridosa que compreendeu minha situação urgentíssima, saí de lá com um novo
passaporte.
Ao descer as escadas do consulado, com o
passaporte na mão, senti a alegria de reconquistar um reino. Ao abrir a porta,
Londres havia recuperado suas cores e eu a via agora, mesmo com chuva, como
sempre ela foi para mim: monumental, vibrante e viva. Doravante, ela será
também a cidade onde aprendi, que para o irremediável, o lema é hakuna matata! Caso contrário, o mundo
não fica o mesmo quando dentro de nós tudo fica turvo.
É... deve ter sido difícil....No fim, virou um belo conto de viagem, com uma bela lição de vida.
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