“...
mas que beleza, em fevereiro, tem carnaval”, anuncia a música de Jorge Ben Jor.
O mês é oportuno para tecer divagações sobre esse hiato moral que anualmente
vem manchar de carmim nossos católicos fevereiros. Não faltariam assuntos para
uma boa crônica. Nesses quatro dias em que “pode-se tudo”, pelo menos para
aqueles que se lançam despudoradamente à folia, vê-se muitas coisas inusitadas
na extensão deste “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Basta
o sol desaparecer no horizonte da já carnavalesca sexta-feira para se constatar
que “alguma coisa está fora da ordem”: o homem que se traveste de mulher sem por
isso ser achincalhado; a bebida consumida como se não houvesse amanhã; o som
alto que não respeita o sossego alheio; a rua que cede lugar aos blocos
carnavalescos, aos carros de som e aos trios elétricos; o lixo que se acumula inerte
no espaço público; o cheiro de urina derramada nos cantos de rua e que não
respeita o olfato civilizado; a alegria excepcional e quase impositiva que escarnece
da tristeza ordinária; o caos com data para acabar. Tudo renderia ótimas
crônicas na pena de Machado de Assis ou de Rubem Braga. Eles tiveram os seus
carnavais. Escreveram magistralmente sobre eles; mas os de hoje, pela magnitude
e permissividade da folia, dar-lhes-iam inspiração infinita.
Contudo,
não é sobre o carnaval que consumirei o tempo do caro leitor. Além de não
dispor do talento daqueles mestres, neste fevereiro algo assombrou-me mais que
as extravagâncias e “anormalidades” carnavalescas. Não foi coisa que a folia
anual impunemente permitisse. Consternei-me com a manifestação de um mal que há
milênios ronda sub-repticiamente o desejo civilizatório da humanidade.
Desde
quando juntamo-nos para viver em sociedade – e isso já faz mais de dez mil anos
–, convivemos com esse perigo rasteiro, iminente. Basta que uns (seres humanos)
considerem-se diferentes dos demais, passando a usar essa diferença para arbitrariamente
segregar e humilhar algum grupo de pessoas, para que a víbora da discriminação
soerga-se das profundezas da alma humana, consumindo-nos na vileza de seu veneno.
Volta e meia ela chacoalha a sua calda e dá o bote. Sua picada faz adoecer uma
sociedade. A discriminação e o preconceito são males crônicos cuja cura muita
vez necessitou do sangue dos afetados, derramado em praça pública para
restituir o “simples” desejo de ser tratado como igual. Mas a serpente é
resistente, mutável, sedutora. Volta a atacar quando uns teimam em querer ser
mais iguais que outros.
Seu
veneno manifestou-se desta vez em Muniz Freire, uma cidade com cerca de 20 mil habitantes
no sul do Espírito Santo. O fato parece singelo, mas reflete séculos de
História. Era uma quinta-feira após o carnaval, época em que, conforme já se
tornou clichê, o ano começa no Brasil. Também começaram as aulas na escola de
ensino fundamental daquele município. As crianças reuniram-se em alvoroço para
saber em que turmas seriam agrupadas. O pequeno Pedro, de oito anos, ficou
feliz ao saber que todos os seus coleguinhas do bairro – o mais pobre do
município – haviam ficado na mesma turma. Achou aquilo incrível. A escola de
fato era um lugar de muita sabedoria. Sabiam até que o Felipe, o Diego e o
João, amigos do Pedrinho, deveriam ficar na mesma classe, pois amizade é algo
que não se separa.
Mas
a inocência de Pedrinho esconde a face vil de outros propósitos. A serpente armava-se
para dar o bote. Em deliberação no Conselho Municipal de Educação, do qual
participam alguns pais dos alunos, ficara acordado que as turmas seriam
divididas de acordo com critérios sócio-econômicos, ou seja, os filhos dos mais
abastados e influentes do município ficariam separados daqueles meninos do
bairro do Pedrinho. “Nada contra aqueles garotos” – pensou mentalmente um dos
pais em assembléia; “são até parecidos com nossos filhos”, completou o
pensamento –, mas eles não têm a mesma estirpe do João Guilherme. Seu pai jura
que ele será médico e, para isso, necessita de uma formação “diferenciada”.
Aqueles garotos do bairro do Pedrinho, por não pertencerem a esse futuro restrito,
só atrapalhariam. Assim também pensaram os pais da Isabel (9 anos), da Carolina
(7) e do Fernando (10); duas promissoras advogadas e um vocacionado engenheiro.
Não
julguemos as intenções dos pais envolvidos. É natural querer o bem dos filhos,
que mesmo criminosos confessos serão sempre para os pais os réus injustiçados. Mas
se trata de uma escola pública. Há funcionários públicos que ratificaram a
decisão do conselho. E isso é manifestamente intolerável nesta quadra da
História, que já possui páginas suficientes para o aprendizado do que significa
a igualdade.
Notável
parte desse aprendizado vem dos Estados Unidos. Após a aprovação da emenda à
constituição norte-americana, que aboliu a escravatura em 1863, sucedeu um
longo período em que a sociedade da época continuava ainda envenenada pela
ofídica discriminação racial. Apesar dos esforços do presidente Abraham Lincoln
para por fim à escravidão nos EUA – ótima oportunidade de reviver esse
importante episódio está no filme “Lincoln”, de Steven Spielberg, que concorre
ao Oscar de melhor filme deste ano –, a discriminação racial não cedeu sua
marcha. Apenas se metamorfoseou. Os negros, de declaradamente diferentes da
raça humana, passaram a “separados, mas iguais”.
Surgiram
então escolas, vagões de trem, bebedouros e outros espaços públicos exclusivos
para os negros. Os serviços eram oferecidos, de forma separada, a todas as
pessoas, termo que nesse momento já incluía os negros. Estes não deveriam mais
se queixar, pois os serviços, apesar de separados, eram “iguais”. Essa forma de
conceber a igualdade não tardou reverberar em protestos e disputas jurídicas. Emblemático
foi o episódio ocorrido em 1957, na pequena cidade de Little Rock, no sul dos EUA, quando um grupo de nove alunos negros necessitou
de escolta policial para frequentar uma escola até então exclusiva para
brancos.
A
Suprema Corte decidira pela inconstitucionalidade das medidas de segregação
racial, entendendo que tratar os negros de forma separada, mas igual, infringia
o princípio da igualdade. As autoridades escolares iniciaram, numa espécie de
projeto experimental, uma política de integração racial, decidindo pela
inclusão dos nove alunos negros na escola de Little Rock. Ocorre que as autoridades desconsideraram a
constatação do físico Albert Einstein: “É mais fácil quebrar um átomo do que um
preconceito”. Foi necessária a intervenção de centenas de policiais e
integrantes do Exército para quebrar o preconceito em Little Rock. Diante de uma turba, composta em sua maioria por
enfurecidos pais e mães dos alunos brancos, os jovens negros foram impedidos de
adentrar a escola. Após alguns dias de protestos, e com escolta policial, os
alunos negros entraram para as salas de aula. Na porta de cada sala, permanecia
um policial para evitar as agressões. Entretanto, nada os protegia dos insultos
e humilhações por parte dos alunos brancos, cruelmente educados para não
aceitar o diferente. Little Rock foi
um marco na luta do movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA, que se
radicalizou na década de 1960, quando Martin Luther King capitaneou o
movimento. Parece incrível, em tão pouco tempo, o sonho desse líder, proclamado
em um discurso antológico (“I have a dream...”),
ter se materializado naquele país, cujo primeiro presidente negro acaba de se
reeleger.
Little Rock e Muniz Freire são cidades
distantes no mapa. Todavia, o que importa é a distância temporal que nos separa
do episódio acima descrito. Nesse período, a humanidade aperfeiçoou um soro
antiofídico capaz de curar as picadas da serpente que nos ronda,
envenenando-nos com o desejo de discriminar o semelhante. Deram-lhe o nome de direitos humanos. Alguns zombam deles,
dizendo que se trata de mero placebo. Outros vociferam que é preferível “matar
a cobra e mostrar o pau”. Mas o que, de imediato, curou Muniz Freire da
lamentável discriminação social na escola foram eles: os frequentemente
desdenhados direitos humanos. Sem o
uso de força policial, sem matar a cobra nem mostrar o pau – como foi
necessário nos tempos de Little Rock
–, a medida foi revertida por determinação do Ministério Público Estadual e os
alunos foram reagrupados, agora pelo isento critério da ordem alfabética.
Pedrinho e seus amigos do bairro pobre de Muniz Freire foram separados, mas
agora eles são iguais.
Os
direitos humanos afugentaram de Muniz
Freire a rastejante e sorrateira discriminação social. Mas ela continua solta
por aí, à espreita, prestes a picar novos tornozelos de mentes fracas e alheias
à nossa herança jurídica e civilizacional. Quem testemunhar o bote, denuncie. O
soro contra o seu persistente veneno está guardado lá na Constituição Federal.
Basta aplicá-lo de imediato. Evita barbáries, dispensa mártires e cura males
que adoecem a igualdade, a liberdade e a fraternidade; a tríade francesa que há
duzentos anos mostra-nos o caminho – cercado de cobras e outros perigos – para
a convivência civilizada de humanos livres e iguais.
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