domingo, 7 de abril de 2013

Separados, mas iguais



“... mas que beleza, em fevereiro, tem carnaval”, anuncia a música de Jorge Ben Jor. O mês é oportuno para tecer divagações sobre esse hiato moral que anualmente vem manchar de carmim nossos católicos fevereiros. Não faltariam assuntos para uma boa crônica. Nesses quatro dias em que “pode-se tudo”, pelo menos para aqueles que se lançam despudoradamente à folia, vê-se muitas coisas inusitadas na extensão deste “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.

Basta o sol desaparecer no horizonte da já carnavalesca sexta-feira para se constatar que “alguma coisa está fora da ordem”: o homem que se traveste de mulher sem por isso ser achincalhado; a bebida consumida como se não houvesse amanhã; o som alto que não respeita o sossego alheio; a rua que cede lugar aos blocos carnavalescos, aos carros de som e aos trios elétricos; o lixo que se acumula inerte no espaço público; o cheiro de urina derramada nos cantos de rua e que não respeita o olfato civilizado; a alegria excepcional e quase impositiva que escarnece da tristeza ordinária; o caos com data para acabar. Tudo renderia ótimas crônicas na pena de Machado de Assis ou de Rubem Braga. Eles tiveram os seus carnavais. Escreveram magistralmente sobre eles; mas os de hoje, pela magnitude e permissividade da folia, dar-lhes-iam inspiração infinita.

Contudo, não é sobre o carnaval que consumirei o tempo do caro leitor. Além de não dispor do talento daqueles mestres, neste fevereiro algo assombrou-me mais que as extravagâncias e “anormalidades” carnavalescas. Não foi coisa que a folia anual impunemente permitisse. Consternei-me com a manifestação de um mal que há milênios ronda sub-repticiamente o desejo civilizatório da humanidade.

Desde quando juntamo-nos para viver em sociedade – e isso já faz mais de dez mil anos –, convivemos com esse perigo rasteiro, iminente. Basta que uns (seres humanos) considerem-se diferentes dos demais, passando a usar essa diferença para arbitrariamente segregar e humilhar algum grupo de pessoas, para que a víbora da discriminação soerga-se das profundezas da alma humana, consumindo-nos na vileza de seu veneno. Volta e meia ela chacoalha a sua calda e dá o bote. Sua picada faz adoecer uma sociedade. A discriminação e o preconceito são males crônicos cuja cura muita vez necessitou do sangue dos afetados, derramado em praça pública para restituir o “simples” desejo de ser tratado como igual. Mas a serpente é resistente, mutável, sedutora. Volta a atacar quando uns teimam em querer ser mais iguais que outros.

Seu veneno manifestou-se desta vez em Muniz Freire, uma cidade com cerca de 20 mil habitantes no sul do Espírito Santo. O fato parece singelo, mas reflete séculos de História. Era uma quinta-feira após o carnaval, época em que, conforme já se tornou clichê, o ano começa no Brasil. Também começaram as aulas na escola de ensino fundamental daquele município. As crianças reuniram-se em alvoroço para saber em que turmas seriam agrupadas. O pequeno Pedro, de oito anos, ficou feliz ao saber que todos os seus coleguinhas do bairro – o mais pobre do município – haviam ficado na mesma turma. Achou aquilo incrível. A escola de fato era um lugar de muita sabedoria. Sabiam até que o Felipe, o Diego e o João, amigos do Pedrinho, deveriam ficar na mesma classe, pois amizade é algo que não se separa.

Mas a inocência de Pedrinho esconde a face vil de outros propósitos. A serpente armava-se para dar o bote. Em deliberação no Conselho Municipal de Educação, do qual participam alguns pais dos alunos, ficara acordado que as turmas seriam divididas de acordo com critérios sócio-econômicos, ou seja, os filhos dos mais abastados e influentes do município ficariam separados daqueles meninos do bairro do Pedrinho. “Nada contra aqueles garotos” – pensou mentalmente um dos pais em assembléia; “são até parecidos com nossos filhos”, completou o pensamento –, mas eles não têm a mesma estirpe do João Guilherme. Seu pai jura que ele será médico e, para isso, necessita de uma formação “diferenciada”. Aqueles garotos do bairro do Pedrinho, por não pertencerem a esse futuro restrito, só atrapalhariam. Assim também pensaram os pais da Isabel (9 anos), da Carolina (7) e do Fernando (10); duas promissoras advogadas e um vocacionado engenheiro.

Não julguemos as intenções dos pais envolvidos. É natural querer o bem dos filhos, que mesmo criminosos confessos serão sempre para os pais os réus injustiçados. Mas se trata de uma escola pública. Há funcionários públicos que ratificaram a decisão do conselho. E isso é manifestamente intolerável nesta quadra da História, que já possui páginas suficientes para o aprendizado do que significa a igualdade.

Notável parte desse aprendizado vem dos Estados Unidos. Após a aprovação da emenda à constituição norte-americana, que aboliu a escravatura em 1863, sucedeu um longo período em que a sociedade da época continuava ainda envenenada pela ofídica discriminação racial. Apesar dos esforços do presidente Abraham Lincoln para por fim à escravidão nos EUA – ótima oportunidade de reviver esse importante episódio está no filme “Lincoln”, de Steven Spielberg, que concorre ao Oscar de melhor filme deste ano –, a discriminação racial não cedeu sua marcha. Apenas se metamorfoseou. Os negros, de declaradamente diferentes da raça humana, passaram a “separados, mas iguais”.

Surgiram então escolas, vagões de trem, bebedouros e outros espaços públicos exclusivos para os negros. Os serviços eram oferecidos, de forma separada, a todas as pessoas, termo que nesse momento já incluía os negros. Estes não deveriam mais se queixar, pois os serviços, apesar de separados, eram “iguais”. Essa forma de conceber a igualdade não tardou reverberar em protestos e disputas jurídicas. Emblemático foi o episódio ocorrido em 1957, na pequena cidade de Little Rock, no sul dos EUA, quando um grupo de nove alunos negros necessitou de escolta policial para frequentar uma escola até então exclusiva para brancos.

A Suprema Corte decidira pela inconstitucionalidade das medidas de segregação racial, entendendo que tratar os negros de forma separada, mas igual, infringia o princípio da igualdade. As autoridades escolares iniciaram, numa espécie de projeto experimental, uma política de integração racial, decidindo pela inclusão dos nove alunos negros na escola de Little Rock. Ocorre que as autoridades desconsideraram a constatação do físico Albert Einstein: “É mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito”. Foi necessária a intervenção de centenas de policiais e integrantes do Exército para quebrar o preconceito em Little Rock. Diante de uma turba, composta em sua maioria por enfurecidos pais e mães dos alunos brancos, os jovens negros foram impedidos de adentrar a escola. Após alguns dias de protestos, e com escolta policial, os alunos negros entraram para as salas de aula. Na porta de cada sala, permanecia um policial para evitar as agressões. Entretanto, nada os protegia dos insultos e humilhações por parte dos alunos brancos, cruelmente educados para não aceitar o diferente. Little Rock foi um marco na luta do movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA, que se radicalizou na década de 1960, quando Martin Luther King capitaneou o movimento. Parece incrível, em tão pouco tempo, o sonho desse líder, proclamado em um discurso antológico (“I have a dream...”), ter se materializado naquele país, cujo primeiro presidente negro acaba de se reeleger.

Little Rock e Muniz Freire são cidades distantes no mapa. Todavia, o que importa é a distância temporal que nos separa do episódio acima descrito. Nesse período, a humanidade aperfeiçoou um soro antiofídico capaz de curar as picadas da serpente que nos ronda, envenenando-nos com o desejo de discriminar o semelhante. Deram-lhe o nome de direitos humanos. Alguns zombam deles, dizendo que se trata de mero placebo. Outros vociferam que é preferível “matar a cobra e mostrar o pau”. Mas o que, de imediato, curou Muniz Freire da lamentável discriminação social na escola foram eles: os frequentemente desdenhados direitos humanos. Sem o uso de força policial, sem matar a cobra nem mostrar o pau – como foi necessário nos tempos de Little Rock –, a medida foi revertida por determinação do Ministério Público Estadual e os alunos foram reagrupados, agora pelo isento critério da ordem alfabética. Pedrinho e seus amigos do bairro pobre de Muniz Freire foram separados, mas agora eles são iguais.

Os direitos humanos afugentaram de Muniz Freire a rastejante e sorrateira discriminação social. Mas ela continua solta por aí, à espreita, prestes a picar novos tornozelos de mentes fracas e alheias à nossa herança jurídica e civilizacional. Quem testemunhar o bote, denuncie. O soro contra o seu persistente veneno está guardado lá na Constituição Federal. Basta aplicá-lo de imediato. Evita barbáries, dispensa mártires e cura males que adoecem a igualdade, a liberdade e a fraternidade; a tríade francesa que há duzentos anos mostra-nos o caminho – cercado de cobras e outros perigos – para a convivência civilizada de humanos livres e iguais.


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