terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Hakuna matata: passaporte para um turista em apuros



Londres é dessas cidades para se embasbacar. Basta caminhar por suas ruas e parques, deslumbrando-se com a imponência e beleza de edifícios, palácios e monumentos – admiravelmente conservados até hoje –, para sentir a riqueza de sua vida social e multicultural. Nota-se uma cidade de singularidades das quais os londrinos são orgulhosos e fazem questão de manter: ônibus vermelhos de dois andares, táxis pretos, sistema de metrô sesquicentenário, carros e ruas com mão de direção contrária, moeda exclusiva, polícia dos bobbies, dias cinzentos e nublados; tudo isso e muito mais – que à primeira vista pode soar arrogante, mas a educação e o bom humor dos ingleses desfazem essa suposição – integram o patrimônio cultural de uma cidade e de um país separados do continente europeu por apenas alguns quilômetros do Canal da Mancha.

Há alguns dias pulei para o lado de lá da Mancha e, junto de minha irmã, cunhado e sobrinha, fomos passar o réveillon na capital do Reino Unido. Obviamente, três dias foram poucos para mostrar-lhes o que havia me fascinado em minhas outras viagens àquela cidade. Além disso, os gostos diferem e não desejaria enfiá-los em museus, galerias de arte e livrarias; nem cansá-los com longas caminhadas por parques e ruas, um prazer gratuito que cultivo quando estou em cidades como Londres. Achei de bom tom acompanhá-los pelos interesses demonstrados, que também me apeteceram. Gostaram de tudo, com ressalva ao exorbitante custo de vida que, mesmo para um turista de poucos dias, causa rombos orçamentários limitadores de uma estadia mais prolongada. Pelo menos para nós, meros assalariados, que juntamos uns suados trocados para testemunhar o que o dinheiro fez e faz daquela cidade.

Tudo ia muito bem, e a cidade já os encantava igualmente. Mas meu primeiro dia do ano reservou-me uma surpresa daquelas. Após um cansativo e prazeroso dia de passeios, e da inacreditável visita pelos andares da centenária loja de departamentos Harrods – a seção de brinquedos fez-nos ter a idade de minha sobrinha de nove anos –, pegamos um táxi em direção ao hotel. Ao desembarcar, segurando sacolas e bolsas, deixei para trás justamente a única coisa que nunca, jamais, de forma alguma, pode ser extraviada numa viagem: o passaporte. Quando dei conta de que minha bolsa havia ficado no táxi, já era tarde e eu ingressava no pesadelo temido por todo turista que se desloca para outro país. Sem passaporte, você é ninguém e não consegue viajar de volta.

Não me considero muito materialista e já lidei bem com a perda de objetos pessoais de valor. Mas quando a matéria que se perde é um passaporte, confesso que não tive o mesmo otimismo daquelas situações, pois sabia exatamente as implicações da falta desse documento, principalmente em um país como o Reino Unido. Ainda restavam dois dias da viagem e um sentimento de impotência e fragilidade instalou-se em mim.

O primeiro dia do ano, que havia sido ensolarado e divertido, foi seguido por um nublado e chuvoso, típico de Londres. Pelo menos em relação ao clima, acordei londrino, com a mente turva e a chuviscar preocupações. Fui cedo ao local onde imaginei que meu problema seria resolvido: o Consulado Geral do Brasil em Londres. Tal era o meu desamparo que no caminho imaginei chegar lá e ser recebido, ou melhor, acolhido por compatriotas que iriam se compadecer do meu estado, sendo atenciosos e gentis. Deparei-me com uma enorme e antiga porta de madeira. Estava fechada. Haviam estendido o feriado de fim de ano e o consulado só abriria no dia seguinte, quando estava marcada minha passagem de volta.

Outra preocupação pendurou-se às demais: o tempo. Tirar outro passaporte é daquelas coisas que demandam documentos, carimbos, fotos, taxas, comprovante disso, daquilo. Providenciar tudo isso em um dia? Em outro país? Hum, o tempo só fechava na minha cabeça. Nuvens cobriam a alegria que normalmente me acompanha em viagens. Assim, nublado, providenciei os documentos que me informaram e retornei taciturno ao hotel. No outro dia, nosso voo de volta para Portugal sairia às 18:30h, num aeroporto distante uma hora e meia de Londres. Entre minhas preocupações, volta e meia trovejava insegurança e pessimismo.

Mas naquele dia, véspera de toda a minha empreitada para conseguir voltar pra casa, tínhamos um evento agendado e aguardado havia meses: assistir ao musical “O Rei Leão”. Claro que a presença da minha sobrinha influenciou a escolha de assistir a adaptação para o teatro do desenho animado da Disney, de 1994. Mas já foi o tempo em que animação ou musical infantil era coisa só pra criança. O premiado musical, com direção de Julie Taymor, estreou na Broadway em 1997 e desde então é um sucesso estrondoso. Além de Nova York e Londres, atualmente é encenado também na França, Japão, Países Baixos, Espanha e, em março de 2013, será a vez de São Paulo.

Prestes a completar vinte anos, a história do leãozinho Simba já entrou para o imaginário popular. A peça recria no palco sua comovente e ao mesmo tempo triste e divertida jornada desde o nascimento até a maturidade, quando então reassume suas responsabilidades como o novo rei. Apesar de já conhecermos bem a história, assisti-la ao vivo com atores a cantar e interpretar os bichos africanos – acompanhados por uma grande orquestra que executa, entre outras, músicas de Elton John – dá-nos outra experiência. A coisa é tão bem realizada que, quando a luz do teatro se apaga e o palco é preenchido por animais, músicas, cores e sons, revivemos tudo, agora com a alma elevada para patamares de sensibilidade não atingidos no cinema ou na tevê.

Além disso, olhar para o lado e ver no rosto das crianças e adultos a face da alegria e da emoção completa o quadro de comunhão e imersão na história genialmente concebida pelos estúdios Disney. O que se vê à frente é tudo mentira. É ficção, com humanos a interpretar bichos. Pode parecer sem sentido, mas a arte transformou aquele teatro do absurdo em sentimentos genuínos de compaixão, alegria e tristeza.  Identificamo-nos com a saga do leãozinho Simba, não por ele ser leão, nem por sua história ser inventada, mas por ela tocar nossa alma, naquilo que nos faz humanos.

Aquele teatro foi tão acolhedor como entrar numa banheira de água quente. Fez-me lembrar de Eça de Queiroz, em O Primo Basílio. Apesar do contexto absolutamente diverso, tive a sensação de me sentir “como um corpo ressequido que se estira num banho tépido”. Minhas preocupações consulares baixaram a guarda. Embarquei novamente na jornada de Simba e com ela reencontrei Timão e Pumba, um espirituoso suricato e um javali bonachão.

As lágrimas provocadas pela trágica morte do pai de Simba – encenada de forma tão terrível quanto no cinema – foram enxugadas com o riso causado pelos seus novos e irreverentes amigos que, quando o encontraram em frangalhos, trataram de reanimá-lo. Hakuna matata, era o que lhe diziam. Entre cantos, danças e presepadas, ensinaram-lhe o significado da expressão: sem preocupações! É o que Timão diz a Simba: “...você tem que deixar o seu passado para trás. Olha aqui, coisas ruins acontecem e você não pode fazer nada para evitar, certo?... Quando o mundo vira as costas para você, você vira as costas para o mundo. Talvez precise de uma nova lição. Repita comigo: hakuna matata”.

Antes de acusarem Timão e Pumba de corromper a jovem bicharada da savana com ideias subversivas e inconsequentes – Monteiro Lobato está no banco dos réus do STF por terem sido identificadas palavras “politicamente incorretas” em seus livros –, é preciso esclarecer: a nova lição não eximiu Simba das responsabilidades como futuro rei. Nem o transformou num leão vagabundo e boêmio. Serei o advogado de Timão e Pumba.  Naquelas condições, o jovem leão precisou desse ensinamento para se recuperar e posteriormente reaver o seu reino, usurpado pelo seu tio durante o período em que ficou sob a tutela de Timão e Pumba. Hakuna matata foi uma vivência, necessária para reerguer Simba, que se fragilizou diante do irremediável. Sem preocupações! Pelo menos por um tempo. Elas só turvam a mente, impedindo-nos de vislumbrar uma saída para os problemas, tornando-os maiores do que de fato são.

Por essas coincidências que a vida não explica, a lição de Timão e Pumba foi por mim revivida em circunstância oportuna. Saí do teatro com a alma leve e o coração tranquilo. Dormi o sono dos bichos, que acredito ser isento de preocupações futuras. Na manhã do dia seguinte, fui para a batalha reaver meu reino, quer dizer, meu passaporte. De volta ao consulado, deparei-me com uma enorme fila. Gente com horário agendado, pessoas na mesma condição que a minha; havia umas 50 pessoas na frente. Nada de ficar cabisbaixo, repetia mentalmente o mantra hakuna matata. E assim a fila foi andando, a mente se acalmando e por volta das 14:00h, após muita burocracia, 200 euros de taxa e a ajuda de uma alma caridosa que compreendeu minha situação urgentíssima, saí de lá com um novo passaporte.

Ao descer as escadas do consulado, com o passaporte na mão, senti a alegria de reconquistar um reino. Ao abrir a porta, Londres havia recuperado suas cores e eu a via agora, mesmo com chuva, como sempre ela foi para mim: monumental, vibrante e viva. Doravante, ela será também a cidade onde aprendi, que para o irremediável, o lema é hakuna matata! Caso contrário, o mundo não fica o mesmo quando dentro de nós tudo fica turvo.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Crônica da indiferença(*)


Houve um tempo em que...
...ser escravo era diferente;
...ser protestante era diferente;
...ser mulher era diferente;
...ser negro era diferente;
...ser judeu era diferente;
...ser homossexual era diferente;
...ser diferente era não ser.
Haverá tempo para as diferenças?
Haverá tempo para a igualdade?
Haverá tempo?
 


(*) Para tempos em que se malafaia o diferente.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Hoje Coimbra, amanhã (meia) saudade




Coimbra, assim como Alegre - minha cidade natal -, é uma cidade universitária. A presença de estudantes, repúblicas, festas e, em alguns casos, certa delinquência juvenil, confere a essas cidades um ar especial. À sua história, aos seus habitantes, às suas casas e ruas acrescenta-se a energia de jovens que saíram de suas cidades, deixaram família e entes queridos para trás e foram estar ali alguns anos de suas vidas, com a expectativa de, por meio do estudo, ter um futuro melhor.

Tanta vitalidade juvenil reunida faz a vida em uma cidade universitária um tanto especial e complexa. Os seus habitantes, apesar do benéfico aquecimento da economia local, precisam desenvolver certa tolerância para com os comportamentos transgressores, impulsivos e etílicos dos jovens universitários. Para muitos é a primeira vez que sentem e vivenciam de fato o significado do sentimento de liberdade. Mas para os neófitos estudantes o processo, por razões obvias, torna-se mais doloroso. A vida já não tem aquele suporte até então imperceptível fornecido pela zona de conforto quentinha e aconchegante criada por pais e amigos. Ao transpor a fronteira dessa zona de conforto familiar, tudo passa a ser desafiador e de certa forma hostil.

Além disso, lidar com a ausência de pessoas e coisas pela primeira vez pode gerar desconfortos e saudades indizíveis. Fora o sabor da comidinha da mamãe, que fica latente na memória do desamparado estudante, aguardando as férias para novamente se revelar em profusão de sabores e afetos. Mas ao final, quando a cidade já não parece mais tão hostil e desconfortável, os “crescidos” estudantes são substituídos por novos e amedrontados jovens, que passarão pelo mesmo processo. As cidades universitárias, palcos desses intermináveis ciclos de crescimento pessoal e acadêmico, também crescem e se desenvolvem. Assim como uma família transforma-se com a chegada de filhos e netos, cidades transformam-se com a chegada de uma universidade. Pode-se até ter saudades do tempo em que tudo era tranquilo e sem algazarras. A rua estava em ordem e a casa arrumada. Contudo, ver as crianças/estudantes felizes e saudáveis a correr pela sala/rua é a felicidade de famílias e cidades universitárias.

Essa história de cidades receberem universidades começou há muito tempo. Na cultura ocidental, remonta à Antiguidade Clássica, quando na Grécia a “Academia” de Platão (387 a. C.) e o “Liceu” de Aristóteles (335 a. C.) eram os locais para onde jovens estudantes do mundo antigo iam ter aulas de filosofia e matemática com mestres do pensamento até hoje referenciados e revisitados. Não é sem propósito que se diz que Platão e Aristóteles, em suas incipientes “universidades”, estabeleceram as bases do pensamento que permitem, ainda hoje, compreender o mundo em que vivemos. Na árvore genealógica das cidades universitárias, Atenas é a mãe de todas elas.

Mas é no final do século XI, após um longo período durante a Idade Média – em que o saber ocidental permanecera intocado e “guardado” nos mosteiros católicos – que o surgimento de universidades na Europa começa a estender a possibilidade de acesso ao conhecimento clássico (grego e romano), bem como ao ainda incipiente conhecimento científico, para além dos membros do clero. Começava-se o processo de universalização do saber. E assim, na cidade italiana de Bolonha, no ano de 1088, funda-se a primeira universidade europeia, destinada inicialmente aos estudos de teologia, filosofia e direito canônico. A partir daí, as universidades multiplicaram-se pela Europa e pelo mundo: Paris, Oxford, Cambridge, Salamanca...; e, em 1290, seria então criada a Universidade de Coimbra, a primeira de Portugal. Alguns séculos depois foi a vez de Alegre, que em 1977 passa a abrigar o então Centro Agropecuário da Universidade Federal do Espírito Santo – CAUFES (hoje, Centro de Ciências Agrárias da UFES).

Muitas experiências podem ser vivenciadas em uma cidade universitária. Aqui em Coimbra, vivencio esse processo que, apesar de doloroso, traz-me um crescimento pessoal e acadêmico que percebo aumentar com passar dos dias e meses. Mas uma experiência em especial é comum a todos os estudantes que se dirigem a uma cidade universitária: a experiência da saudade. Vivê-la aqui em Coimbra é ainda mais peculiar.

Primeiro, porque, como falante da Língua Portuguesa, tenho o privilégio de poder expressar esse sentimento por meio de uma palavra que só existe nesse idioma. “Saudade” não tem tradução em outras línguas. Se eu quisesse explicar a um inglês o significado de “saudade” (o dicionário descreve-a como “lembrança grata de pessoa ausente ou de alguma coisa de que alguém se vê privado”), teria que recorrer a um verbo (to miss) e não a um substantivo, inexistente naquele idioma. Em Português, saudade tem existência. É sentida concretamente no peito de quem fica ou de quem parte. Os portugueses sentem-na desde quando começaram a lançar-se ao mar, deixando tudo para traz em busca de um mundo novo. Era preciso dar nome a isso que se sentia, que apertava no coração tanto dos que partiam como dos que ficavam. A glória das “Grandes Navegações” iniciadas no século XV deixou a marca da saudade no coração dos portugueses.

Segundo, porque Coimbra é uma cidade encantadora. Integrar-se à sua história e à sua cultura é uma tarefa inicialmente dolorosa, pois a saudade dos que ficaram ainda bate forte no peito. Mas com a vivência dos dias e meses, a cidade, com seus encantos, ruas e prédios cheios de história, torna-se o espaço de uma nova vida. Uma vida que se vive entre a saudade daqueles que estão distantes e a paixão que só faz aumentar por tudo que aqui se vê e se sente. Uma vida em que o autoconhecimento desvela os véus da ignorância de si mesmo, revelando e genuinidade escondida sob os rótulos e preconceitos cotidianos. Depois de tempo, não se sabe mais quem é o estrangeiro, se você ou se a cidade.

Para cá vieram muitos brasileiros. Notáveis brasileiros, como o poeta Gonçalves Dias, cuja saudade extrapolou o peito e pousou no papel. Escreveu entre os muros da Universidade de Coimbra a “Canção do Exílio”, uma ode à sua distante terra natal. Uma terra de palmeiras “onde canta o sabiá”.

Após um ano aqui em Coimbra, recentemente fui passar férias no Brasil. No dia 17 de julho deste ano regressei para uma temporada de dois meses. Nesse dia senti um misto de alegria por regressar e melancolia por partir. Eu estava partido, dividido. Como que uma profecia a se cumprir, senti no peito a letra do belíssimo fado acadêmico-conimbricense: “Coimbra tem mais encantos, na hora da despedida”. Desde que aqui cheguei também ouço outra frase, que vi escrita num dos muros da cidade: “Hoje Coimbra, amanhã saudade”. Naquele dia, meu coração desejou sentir apenas “meia saudade”.


meia saudade

a parte partida que parte
disse à que fica
em despedida
que sentirá meia saudade

antes de formar o inteiro
partilhavam o vazio
mas a cidade juntou o imperfeito
e fez surgir um amor estrangeiro

a parte partida que fica
doravante, sempre aguardará a outra
para juntas, bifronte, jamais sentirem
a dor da inteira saudade na despedida