Como a maioria dos meninos, os cães sempre
tiveram minha predileção entre os bichos de estimação. Quando era pra escolher
a convivência com outro mamífero, preferia os totós e rejeitava os bichanos. Na
minha cabeça (de menino), o cão devia ser de fato o melhor amigo do “homem”. Gatos
eram coisa de menina. E, fazendo coro àquele dito popular, durante vários anos
alguns rabos caninos balançaram-se perante a minha chegada em casa. Naquela
mente imatura, felinos eram bichos caseiros, recatados e com um ar de mistério
semelhante ao das meninas. Já os cães, assim como os meninos, gostavam de rua,
eram lambões e sem muitos modos.
Entre as recompensas de se ter um cão, passear
garbosamente na rua com o fiel amigo ao lado era mais um desejo de menino. A
imagem do caminhar ladeado por um cão na coleira imprimia masculinidade e
afirmação perante os outros garotos, mesmo que na prática não houvesse nada de
viril nessa cena e tudo não passasse de um fedelho sendo arrastado por um cão
desobediente e babão. Eu aderia ao senso comum: se os homens são de Marte e as
mulheres são de Vênus, meninos têm cachorros e meninas têm gatos. O cachorrão e
a da gatinha, esse antropomorfismo machista e sexista acompanhou meu
amadurecimento perante a vida e os animais de estimação.
Demorou quase quarenta anos para eu me permitir
a companhia de um gato, mais especificamente, de uma gata. Uma filhota de uns
três meses de vida que encontrei na rua num domingo de temporal no mês de
dezembro. Vi-a debaixo de uma pia, onde ela tentava se esconder da chuva.
Estendi o braço para acariciá-la e ela, mesmo tímida, lambeu meu dedo. A
lambida áspera foi o suficiente para, num impulso, colocá-la dentro do carro e,
em minutos, no meu quarto.
Segui os trâmites e procedimentos de um
bom dono: veterinário, vacinas, ração, brinquedinhos, caixa de areia para as
necessidades... Ah, e dei-lhe, claro, um nome: Laura. Achei que seria o
suficiente para obter os resultados desejados por quem tem um pet: carinho incondicional, companhia
fiel, atenção toda para mim, “– Olha... meu dono chegou... hora de festa!!!”. Não,
espera... isso era com cães! Com gatos, a coisa é diferente.
Em apenas um mês de convivência, percebi
algumas dessas diferenças. Gatos têm personalidade. Cães também têm, mas os
gatos exigem respeito a ela. Não se submetem aos donos. Estes é que precisam,
para o bem da relação, se adaptar à sua presença. Os bichanos, se quiserem dar
carinho, dão; se não quiserem, ignoram com um olhar fulminante, do tipo “me
deixe em paz no meu canto, não estou pra brincadeiras agora!”. Preocupam-se com
a higiene pessoal. Dormem de dia e querem atenção à noite – um problema que,
para minha saúde, preciso resolver logo. Ao invés de guardar e proteger o dono,
apenas observam e, ao que parece, julgam-no com olhos desconcertantes.
Um filósofo chamado Hegel, numa das
maiores e mais difíceis metáforas da filosofia – a “dialética do senhor e do
escravo” – inverte a posição de ambos, afirmando que, em razão das condições de
reconhecimento mútuo, o “senhor” não passa de escravo do “escravo”, pois só por
meio deste que aquele existe na condição de “senhor”. Difícil? Até hoje não sei
se entendi isso direito, mas posso afirmar que algo parecido ronda a relação
com Laura. Eu pensava que eu seria o seu “senhor”, ou melhor, o seu dono.
Mas os dias têm me mostrado que,
dialeticamente, ela tem se tornado a minha dona. Por ter que conviver com suas
manias e desejos, eu é que acabo, não raro, cedendo às suas vontades. Em
algumas situações precisarei ter mais pulso e deixar claro o que me incomoda. E
assim vamos tentando nos entender, numa relação complexa que requer de ambos
respeito e atenção ao outro. Afinal, ninguém deve submeter ninguém. Uma convivência,
mesmo com animais, só tem sentido se houver respeito e admiração à
individualidade do outro. Muitos chamam isso de amor. Na sua ausência, até as
feras saem feridas.
Já fazia um tempo que eu desejava a
companhia felina. Muitas pessoas interessantes que conheço relatavam a delícia
dessa convivência. Aquele domingo chuvoso foi o momento e resolvi me arriscar. Na
verdade, continuo me arriscando, pois toda relação é uma aventura, sujeita aos
riscos e imperfeições dos sujeitos envolvidos. Mas pelo menos agora os tempos
são outros. Não sou mais menino. Não sou de Marte nem de Vênus. Um pouquinho
mais crescido, sinto-me livre para decidir, independente do meu gênero, com
quem eu quero o meu tempo compartilhar, as manias aturar e, acima de tudo, que
fera arrisco-me a amar.