terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O tempo do amor

Amaram-se no cais
de um tempo feliz
onde amar era futuro.
Para onde partiam os dias
em rodopios, inebriantes,
a embalar os amantes,
fazendo-os acreditar
que o tempo é brincar.

Mas corroídos de paz 
e de prazer fugaz,
amam-se em cômodos dias,
ciente das horas, carentes de mais.

Consumidos e reféns, os amantes resistem.
O olhar cúmplice suplica o amor,
que outrora explicito, agora é tácito.

Agora é tarde:
resta-lhes o clarão
aberto pelo fogo
que um dia foi paixão.

Das chamas restou o passado,
onde pisam nas brasas de lembranças felizes,
fulminadas pelo tempo que não as quis mais presentes.

Sobre as cinzas procuram outra direção.
Um caminha de volta para o cais do amor, onde,
com receio de novas tormentas, ancora seu coração.

Intoxicado do ar – dor de dias amarelados –,
O outro posta-se diante do precipício dos amores sepultados,
Decidido a por fim em tudo aquilo, atira-se num salto.
A queda foi suave, nas asas de seu coração alado, um dia amado.

Desde então respira bem.
Mas o tempo, que no passado era amar,
demorou a com ele novamente brincar.


terça-feira, 29 de julho de 2014

Futebol Arte

Tudo começou com ares românticos: o regresso às origens e a realização de uma Copa do Mundo no país do futebol; o amor idealizado ao hexacampeonato; uma seleção de heróis que iria redimir, num misto de tradição e talentos individuais, o temor do insucesso da falta de infraestrutura e da preparação intempestiva dos estádios; heróis nacionais que não deixariam, é claro, de lutar contra moinhos de ventos, impedindo-os de soprar outro maracanaço em terras tupiniquins. Mas o futebol jogado na Copa do Mundo de 2014 não seguiu o script romântico. Preferiu flertar com o barroco e o surrealismo, tendendo ao final para o impressionismo alemão. Pelo menos nesse esporte, o embate entre as nações foi uma mistura de estilos que não respeitou o determinismo norte/sul, centro/periferia, metrópole/colônia; mostrou-se uma Copa do Mundo pós-Moderna na qual a incerteza tornou-a tão bela.

No primeiro ato do espetáculo, destaque para o grupo da morte. Batizar-lhe assim já trazia em si o tom barroco que se dava ao início do enredo. A vida e a morte sendo jogadas pelas luminosas seleções da Itália, Inglaterra e Uruguai. Entre elas insurgia-se uma tímida e cinzenta Costa Rica. E nesse contraste entre luz e sombra, o gris costa-riquenho e o celeste uruguaio ascenderam ao relicário do futebol. Acentuando os contrastes, além de Itália e Inglaterra, a favorita Espanha desceu do altar e juntou-se precocemente aos mortais espectadores.

Enquanto isso a seleção brasileira fazia sua atuação mambembe. Sem um roteiro convincente, apresentava-se inconstante. O elenco era respeitável, havia protagonistas de peso, mas o espetáculo não convencia. A plateia fazia que gostava, afinal, a cada ato, percebia que algum protagonista merecia aplausos. Mas reconheciam que o conjunto da obra era ruim.

Lá pela página 200, quando o romance já aborrecia, o enredo deu uma reviravolta. Abandonou o romantismo e o barroco. Tingiu-se de tons trágicos e surreais. Num jogo, o ator principal caiu no chão agonizando. Levara um joelhada nas costas e fraturou a vértebra. Noutro, um jogador uruguaio dá uma dentada no adversário. Nada mais Salvador Dali, com um certo toque freudiano.

Mas o anticlímax da obra ocorre no penúltimo capítulo. Mistura de tragédia grega com surrealismo, o anfitrião agoniza diante de sete gols da Alemanha. O país cujo passado lhe impõe o temor pelo nacionalismo, liberta-se em catarse histórica e massacra sem culpa o adversário com sorriso no lábios e aplauso da plateia. Mostra ao mundo que trabalho, educação e seriedade, temperados com a alegria dos trópicos, são capazes reinventar uma nação por meio do futebol. Numa espécie de síndrome de Estocolmo, até mesmo o povo brasileiro, vítima da derrota acachapante, passa a venerar e torcer pelo seu algoz.


Daí veio o capítulo final, em que hermanos e alemães decidiram a taça. Para felicidade brasileira, o impressionismo alemão venceu.  Não houve maracanaço, mas dança alemã-pataxó para comemorar a conquista da taça dentro do Maracanã. Por esses e muitos outros motivos, dizem que essa foi a Copa das Copas. Não sei se em relação à qualidade do futebol, que parece ser coisa mais séria. Mas talvez o sucesso da Copa do Mundo de 2014 sirva para mostrar que roteiro linear e previsível, e jogo de cartas marcadas, já não fazem mais sucesso. Isso nas artes já foi descoberto faz tempo, apesar de insistirem em folhetins modorrentos, como os de Manuel Carlos. O ideal romântico do Leblon tornou-se chato demais. Todos agora preferem o ritmo e a conectividade de Avenida Brasil. Em vez de investir num roteiro Disney, escolhendo Dunga para o comando da seleção brasileira, poderiam chamar o João Emanuel Carneiro. Carminha é mais verossímil que Helena e Branca de Neve.

Sobre meninos e gatos

Como a maioria dos meninos, os cães sempre tiveram minha predileção entre os bichos de estimação. Quando era pra escolher a convivência com outro mamífero, preferia os totós e rejeitava os bichanos. Na minha cabeça (de menino), o cão devia ser de fato o melhor amigo do “homem”. Gatos eram coisa de menina. E, fazendo coro àquele dito popular, durante vários anos alguns rabos caninos balançaram-se perante a minha chegada em casa. Naquela mente imatura, felinos eram bichos caseiros, recatados e com um ar de mistério semelhante ao das meninas. Já os cães, assim como os meninos, gostavam de rua, eram lambões e sem muitos modos.

Entre as recompensas de se ter um cão, passear garbosamente na rua com o fiel amigo ao lado era mais um desejo de menino. A imagem do caminhar ladeado por um cão na coleira imprimia masculinidade e afirmação perante os outros garotos, mesmo que na prática não houvesse nada de viril nessa cena e tudo não passasse de um fedelho sendo arrastado por um cão desobediente e babão. Eu aderia ao senso comum: se os homens são de Marte e as mulheres são de Vênus, meninos têm cachorros e meninas têm gatos. O cachorrão e a da gatinha, esse antropomorfismo machista e sexista acompanhou meu amadurecimento perante a vida e os animais de estimação.

Demorou quase quarenta anos para eu me permitir a companhia de um gato, mais especificamente, de uma gata. Uma filhota de uns três meses de vida que encontrei na rua num domingo de temporal no mês de dezembro. Vi-a debaixo de uma pia, onde ela tentava se esconder da chuva. Estendi o braço para acariciá-la e ela, mesmo tímida, lambeu meu dedo. A lambida áspera foi o suficiente para, num impulso, colocá-la dentro do carro e, em minutos, no meu quarto.

Segui os trâmites e procedimentos de um bom dono: veterinário, vacinas, ração, brinquedinhos, caixa de areia para as necessidades... Ah, e dei-lhe, claro, um nome: Laura. Achei que seria o suficiente para obter os resultados desejados por quem tem um pet: carinho incondicional, companhia fiel, atenção toda para mim, “– Olha... meu dono chegou... hora de festa!!!”. Não, espera... isso era com cães! Com gatos, a coisa é diferente.

Em apenas um mês de convivência, percebi algumas dessas diferenças. Gatos têm personalidade. Cães também têm, mas os gatos exigem respeito a ela. Não se submetem aos donos. Estes é que precisam, para o bem da relação, se adaptar à sua presença. Os bichanos, se quiserem dar carinho, dão; se não quiserem, ignoram com um olhar fulminante, do tipo “me deixe em paz no meu canto, não estou pra brincadeiras agora!”. Preocupam-se com a higiene pessoal. Dormem de dia e querem atenção à noite – um problema que, para minha saúde, preciso resolver logo. Ao invés de guardar e proteger o dono, apenas observam e, ao que parece, julgam-no com olhos desconcertantes.

Um filósofo chamado Hegel, numa das maiores e mais difíceis metáforas da filosofia – a “dialética do senhor e do escravo” – inverte a posição de ambos, afirmando que, em razão das condições de reconhecimento mútuo, o “senhor” não passa de escravo do “escravo”, pois só por meio deste que aquele existe na condição de “senhor”. Difícil? Até hoje não sei se entendi isso direito, mas posso afirmar que algo parecido ronda a relação com Laura. Eu pensava que eu seria o seu “senhor”, ou melhor, o seu dono.

Mas os dias têm me mostrado que, dialeticamente, ela tem se tornado a minha dona. Por ter que conviver com suas manias e desejos, eu é que acabo, não raro, cedendo às suas vontades. Em algumas situações precisarei ter mais pulso e deixar claro o que me incomoda. E assim vamos tentando nos entender, numa relação complexa que requer de ambos respeito e atenção ao outro. Afinal, ninguém deve submeter ninguém. Uma convivência, mesmo com animais, só tem sentido se houver respeito e admiração à individualidade do outro. Muitos chamam isso de amor. Na sua ausência, até as feras saem feridas.


Já fazia um tempo que eu desejava a companhia felina. Muitas pessoas interessantes que conheço relatavam a delícia dessa convivência. Aquele domingo chuvoso foi o momento e resolvi me arriscar. Na verdade, continuo me arriscando, pois toda relação é uma aventura, sujeita aos riscos e imperfeições dos sujeitos envolvidos. Mas pelo menos agora os tempos são outros. Não sou mais menino. Não sou de Marte nem de Vênus. Um pouquinho mais crescido, sinto-me livre para decidir, independente do meu gênero, com quem eu quero o meu tempo compartilhar, as manias aturar e, acima de tudo, que fera arrisco-me a amar.