- Aonde você vai com tanta pressa?
- Estou a caminho.
- A caminho de onde?
- De um lugar onde, dizem, não se pode ter pressa.
- Não me respondeu, a caminho de onde?
- De Santiago de Compostela.
- Ah tá. Dá o quê, umas três horas daqui de Coimbra?
- Sim, mas não irei de carro. Farei a pé o Caminho de Santiago de Compostela, já ouviu falar?
- Claro. E serão quantos quilômetros?
- 220 km.
- O quê???
- Sim, e isso porque irei percorrer um quarto de todo o caminho, que vai da França a Santiago.
- Mas por que você decidiu fazer isso?
- Não sei ainda.
- Você não tem mais o que fazer não?
- Sim, tenho muitas coisas. Não saber das coisas é uma delas.
- Não entendo. Mas... boa sorte!
- Obrigado. Volto daqui a oito dias. Na volta eu conto como foi. Talvez eu descubra alguma razão para ter ido.
sexta-feira, 25 de maio de 2012
domingo, 20 de maio de 2012
A gente não quer só comida
A ideia que eu tinha na cabeça era tão mais interessante e genuína! Envolvia superação, valorização do mais fraco, sobrevivência, algozes e vítimas. Todos os ingredientes de um romance daqueles. Daí um argumento histórico-científico, com fundamento "na realidade" dos fatos, fez tudo voltar a ser lógico, racional e um pouco sem graça, acabando com todo o encanto da coisa. Foi assim com o papai noel, com o super homem, com o Lula... Eis que agora foi a vez da feijoada.
Imaginar que o prato mais democrático e genuinamente brasileiro teve sua origem numa senzala, onde eram "generosamente" dispensados os restos e os miúdos do porco, inservíveis aos tiranos senhores de escravos, foi uma ideia que durante muito tempo permaneceu inabalada e mítica para mim. Na condição subumana e de miséria, os escravos haviam nos legado o prato que hoje é servido tanto no self service da esquina como no restaurante estrelado pelo Michelin. Não havia sido criação de chef algum. A realidade cruel e inglória havia criado a nossa gastronomia mais genuína. Um prato cheio de cores e sabores, que eu e meus amigos estávamos sentindo tanta falta aqui em Coimbra.
Mas aquela versão da origem da feijoada não resistiu a uma pequena pesquisa que fiz para saber como eu faria uma feijoada para os amigos na minha casa. O que um pesquisador - chato e destruidor de fantasia - descobriu foi que essa história dos escravos terem "inventado" a feijoada não tem fundamento algum. Segundo Carlos Augusto Ditadi, em artigo publicado na revista Gula de 1998, essa alegada origem da feijoada "não passa de lenda contemporânea, nascida do folclore moderno, numa visão romanceada das relações sociais e culturais da escravidão no Brasil".
Continuando a "destruir" nossa imaginação e fantasia gastronômicas, diz que a sociedade escravista do Brasil, nos séculos XVIII e XIX, era marcada pela escassez de alimentos e pela fome, em função da prática da monocultura, do extrativismo mineral e do trabalho escravo, que demandava alimentar muitas bocas. Um escravo era muito caro para deixá-lo morrer de forme. Isso afetava até os "donos" desses infelizes, que não iriam dispensar nenhum miúdo nem partes menos nobres do porco. Os escravos que comessem farelo e farinha de mandioca. Além disso, tudo aquilo era, à época, considerado também uma iguaria. O pesquisador descobriu recibos de um açougue carioca no século XIX que registrava a venda de carnes, linguiças, língua, orelhas, pés, etc. Ou seja, tudo era apreciado, inclusive essas partes que são a essência da feijoada e não seriam descuidadamente "jogadas" aos escravos.
A origem "verdadeira" da feijoada não tinha nada que ver com os escravos. Tratava-se de uma adaptação dos costumes culinários portugueses, notadamente das regiões da Entremadura, das Beiras e de Trás-os-Montes e Alto Douro. Nessas regiões era comum misturar feijões de vários tipos com linguiças, orelhas e pé de porco, numa espécie de cozido muito comum na Europa, como há na França o cassoulet, que também usa feijão (branco) no seu preparo. Nada de escravos, nada de superação e de sobrevivência do mais fraco. A origem da feijoada, de fato, nada mais é do que isso, uma adaptação de costumes culinários trazidos pelos portugueses. Claro que ela se tornou diferente e tipicamente brasileira, mas, na origem mesmo, nada de romance com protagonistas escravos.
Mesmo com o coração partido por não ter mais o orgulho de imprimir-lhe a chancela originária de made in Brasil, decidi trazer brasilidade a Coimbra chamando uns amigos para uma feijoada aqui em casa. O feijão preto eu já tinha, fruto de "contrabando" das pessoas que vieram do Brasil me visitar. Iniciou-se então um processo que foi uma alegria nos últimos dias. Comecei por catar o feijão. Enquanto o fazia, relembrava aqueles versos de João Cabral de Melo Neto, do livro "A Educação pela Pedra", e sua poderosa metáfora desse doméstico processo com a escolha das palavras e a escrita. Enquanto catava, pensava na possibilidade de um dia conseguir fazer isso com uma pitada de competência, pois acredito que escrever seja mesmo como catar feijão.
"Catar feijão se limita com escrever:joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco."
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco."
Após "jogar fora o leve e oco, palha e eco", deparei-me com algumas dificuldades de ingredientes. Coisas que não achei por aqui, como paio, linguicinha calabresa, carne seca e couve. Mas fora isso, após três dias preparando uma feijoada luso-brasileira, acredito que obtive relativo sucesso na empreitada. Modéstia a parte, ficou de lamber os beiços.
Como até hoje não apareci por aqui, cá estou (para os que me conhecem, não se espantem, o novo visual eu explico nos próximos textos) em fotos da preparação, da mesa posta e dos amigos que tornaram uma simples quarta-feira em festa na minha humilde residência:
Como disse certa vez um amigo meu: o segredo do prato é a cor. Quando perceber que seus convidados estão azuis de fome, servi-o. É sucesso na certa!
Ah... como foi agradável aquela tarde. A comida estava lá, mas foi apenas o motivo secundário que estrategicamente escolhi para trazer gente querida e agradável para dentro da minha casa. Experimente fazer isso também. Garanto que o resultado será ótimo. Primeiro, decida que você irá cozinhar algo. Pode ser algo muito simples, isso não importa. Não sabe cozinhar? Acredite, hoje tudo é possível com um pouco de boa vontade. Aliás, deposite toda sua (boa) vontade e energia na realização desse processo. Eu, por exemplo, nunca havia feito uma feijoada (que meus convidados não leiam isso). Envolva-se, selecione os ingredientes, prepare tudo, entradinhas, música, pratos, talheres, guardanapos, bebidas... Um exercício de alteridade que lhe fará um bem danado e será motivo de bom bate-papo e de agradável convivência.
Já ia esquecendo de duas coisas muito importantes. Se decidir fazer isso, primeiro, tão importante quanto selecionar os ingredientes de qualidade é escolher pessoas de igual característica para sua reuniãozinha. Gente chata é batata: faz tudo desandar!
Outra coisa, e a mais importante: não se esqueça das flores. É preciso decorar o ambiente nem que seja com um vasinho de margaridas. Isso não irá afetar o sabor da iguaria que você irá preparar. A falta delas poder deixar insosso não o prato, mas o ambiente. Elas são imprescindíveis porque serão também comidas. Não fisicamente (se bem que há ótimos pratos com pétalas de flores), mas serão uma leve e simbólica entrada para os seus convidados. Ao comê-las com os olhos, elas serão responsáveis por encher-lhes de algo imaterial. Eles sairão plenamente saciados da sua casa. E, sem saber por que, lembrar-se-ão com carinho de que alguém um dia preocupou-se, nos detalhes mínimos, em alimentar-lhes o corpo e a alma. É preciso que cuidemos uns dos outros!
Enquanto eu preparava tudo para receber meus amigos, ouvia Bethânia. Entre uma música e outra, ela declamou um poema que descobri ser de uma poetisa portuguesa, Natália Correia (1923-1993). Com o vigor de sua interpretação, Bethânia lembrava-me do que eu não poderia deixar de me atentar ao receber meus amigos:
"Oh, subalimentados do sonho
A poesia é para comer"
Larguei tudo e fui correndo comprar as flores.
segunda-feira, 14 de maio de 2012
Queima das fitas
No último domingo eu vi a felicidade. Não sei como, mas de repente eu vi. Ela estava lá, no meio da rua, nua e usando fita colorida no cabelo. Muitos dizem que não é possível vê-la. Aquela história de que ela não é mais que um caminho e coisa e tal. Pode até ser, mas acho que de vez em quando ela aparece mesmo. O tempo até deu uma trégua e naquele dia, após um (excessivo) período de chuvas, fez um ensolarado domingo de primavera aqui em Coimbra.
Como ela não ia ficar nua num dia de chuva, e certamente tem uma ligação muito íntima com Deus e os santos, imagino até o que tenha pedido a São Pedro:
- Olha, São Pedro, hoje eu quero ir para os lados de Coimbra. Dizem que tem um festa por lá e quero dar o ar da graça. Dá pra deixar o dia bonito e ensolarado?
- Mas Felicidade, isso não está previsto.... Vai continuar chovendo mais uns dias, pra compensar a seca que teve por lá.
- Ah, não custa nada, é só hoje! E já faz um bom tempo que não apareço por lá. Deixa vai...
Não precisou falar duas vezes. No domingo em que realizou-se a mais tradicional festa universitária, de uma das mais tradicionais universidades da Europa, a felicidade apareceu nua e desfilou a céu aberto, que pintou-se de azul de uma hora para a outra. São Pedro não é bobo de lhe negar um pedido!
Por que ela veio nua? Ah, nisso ela é que nem a beleza. De vez em quando gosta de tirar a roupa e mostrar-se. Muito diferente de sua outra amiga, a verdade, que vive por aí toda coberta e raramente alguém a vê. Ao contrário, muitas vezes a felicidade gosta de fazer um topless, como a sua colega Vênus de Milo. Mas quando o motivo é "daqueles", ela vem como a Vênus de Botticelli, nua mesmo:
Normalmente ela fica assim: entre quem a quer vestir e quem prefere sua nudez forte. A cada dia mais os "ventos do norte" perdem para os que querem vesti-la. Com vestes, ela não deixa de ser a felicidade. Mas uma felicidade tímida, pudica, que ninguém repara muito. Mas quando ela decide tirar tudo e ficar "nua ao meio dia"... aí não tem pra ninguém. Só não vê quem não quer. E nesse dia eu vi, "meninos, eu vi!"
Mas antes de eu falar como a vi, deixa-me falar um pouco sobre a festa na qual ela decidiu participar. A "Queima da fitas" é a mais antiga e tradicional festa de estudantes universitários de Portugal, surgida originalmente na Universidade de Coimbra. Uma semana de shows, eventos e festividades esportivas, culturais, etílicas...e muitos outros adjetivos que não tenho coragem de dizer aqui.
A festa remonta à metade do século XIX e representa um rito de passagem de dupla face. Trata-se tanto da despedida e formatura dos alunos do último ano da licenciatura (graduação), como também do primeiro evento oficial em que os calouros podem utilizar, orgulhosos e após passarem por inúmeros trotes (aqui se chama "praxe"), o traje acadêmico, subindo na hierarquia acadêmica e sendo considerados, doravante, veteranos. Esse traje merece um texto a parte. Para quem não acompanha este blog ou ainda não o viu:
Quando cheguei a Coimbra, não imaginava a tradição e o profundo significado que esse traje tem para os alunos. A ele relaciona-se um sentimento de pertença e orgulho acadêmicos. Algo raro num mundo em que, a cada dia, o simbólico e o lúdico perdem espaço para a objetividade e a competição selvagem. Ser acadêmico em Coimbra é, mais que o aprendizado objetivo de algum tipo de ciência, uma vivência cheia de etapas, ritos, desafios, reconhecimento e, por que não, frustrações, tropeços e injustiças. Trata-se, de fato, de uma VIDA acadêmica.
E esse significado e sentimento manifestam-se ainda mais durante a semana em que ocorre a "Queima das Fitas", que começa, ou como dizem por aqui, "arranca", com a noite da Serenata. À meia noite de uma quinta-feira, em frente à Sé Velha (igreja matriz da cidade), os estudantes, TODOS vestidos com o negro traje universitário (para os calouros esse é o primeiro evento em que podem utilizá-lo), entoam, emocionados e em meio a um silêncio comovedor, belíssimas canções de fado. Aqui é possível sentir um pouco por que o fado, eleito recentemente patrimônio imaterial da humanidade, é a manifestação da alma do povo português. Essa imagem diz (quase) tudo:
Mas por que se deu à festa o nome de "Queima das Fitas"? Primeiro, trata-se de uma festa que dura oito dias: um dia dedicado a cada faculdade: humanidades; direito; medicina; ciência e tecnologia; farmácia; economia; psicologia e ciências da educação; e ciências do esporte e educação física.
Tudo começou lá pelos idos do século XIX, quando os alunos usavam uma pasta para guardar seus livros e sebentas (cadernos de rascunho, lembram-se da Filipa e do Nuno?). Como forma de organizá-los, utilizavam uma fita para amarrar tudo. Essa fita também recebe o nome de "grelo". Com o tempo, cada curso da universidade passou a utilizar um grelo de determinada cor, ou uma combinação de cores. Começou com o curso de Direito e sua (ai, não aguento usar mais essa palavra) "tradicional" fita vermelha. Hoje há uma profusão de cursos e suas respectivas cores, que ajudam a amenizar a sobriedade daqueles trajes.
Medicina: amarelo
Direito: vermelho
Letras: azul escuro
Economia: vermelho e branco
Psicologia: laranja
Farmácia: roxo
Desposto: castanho e branco
(...)
A "queima do grelo", ou seja, o ritual simbólico em que os alunos incineram aquelas fitas coloridas que representam seu curso, acabou por tornar-se o "nome fantasia" da festa universitária mais colorida do velho continente.
A "queima do grelo" ocorre logo pela manhã, no domingo em que se realiza o outro GRANDE, o mais pomposo, animado e feliz evento da semana: o cortejo. Uma espécie de parada, com "carros alegóricos" feitos e decorados pelos próprios estudantes. Quando saí de casa nesse dia em direção à universidade, para acompanhar o cortejo, senti algo de diferente na cidade. Reparei que havia uma senhora muito elegante na rua, que usava um vestido branco de seda quase transparente. Achei-a bem ousada para os padrões daqui. Quando ela passava pelas pessoas, deslizava delicadamente a mão por baixo dos seus queixos, provocando-lhes um largo sorriso. Mas ainda não é hora de falar sobre ela.
O cortejo sai do centro histórico da universidade, que situa-se na "Alta" (o ponto mais elevado da cidade e onde há a emblemática - e fálica - Torre do Relógio), em direção à "Baixa", às margens do rio Mondego. Se você já veio (ou se virá a Coimbra) sabe (ou saberá) do que estou falando. Praticamente de qualquer lugar de Coimbra se avista essa torre. Aproveito para deixar uma foto da cidade que a cada dia me arrebata:
Cheguei cedo à "Alta" e fui direto ao local onde os carros "alegóricos" estudantis estavam estacionados, pois haviam me dito que lá era possível apreciar todos os detalhes de um trabalho artesanal e dedicado dos estudantes que se mobilizam, voluntariamente, para deixar o carro da sua faculdade o mais bonito, irreverente e colorido da universidade. As mensagens críticas e de cunho político-reivindicatório são também marcas desse desfile.
Percorri embasbacado entre os carros coloridos e divertidos, que mudou a cara do ambiente austero em que percorro nos dias de aula. Tirei algumas fotos do interessante e bem executado trabalho dos dedicados alunos de Coimbra.
Enquanto eu caminhava por entre os carros, reparando nos detalhes e nos preparativos para o início do cortejo, aquela mulher que tinha visto perto de casa estava agora lá. Achei estranho, mas ela já não usava o vestido. Cobria-se apenas de roupa íntima, mas incrivelmente não estava vulgar. Continuava elegante a fazer gracejos e tirar sorrisos das pessoas. Vi que ela pegou uma fita do chão e amarrou no cabelo. Ficou um charme. Mas foi só eu me distrair, quando olhei de novo ela havia sumido entre os carros.
Bem, então fui para a Praça da República, onde uma multidão aguardava a passagem do cortejo. Fiquei lá com uns amigos, que eu acho que haviam encontrado com a tal senhora. Eles estavam mais sorridentes que de costume.
Quando os carros começaram a descer a rua que dá acesso à praça, a multidão paciente e civilizada começou a se alvoroçar. Via-se de longe os carros e, em cima e ao redor deles, estudantes em completo estado de graça e entoando cânticos e canções que louvavam seus cursos e a cidade de Coimbra. À frente do cortejo, como parte de mais uma tradição que comovia os mais sensíveis, um senhor, acompanhado de uma bandinha, conduzia vagarosamente um tipo de estandarte com fitas de todas as cores dos cursos e vários cravos vermelhos, que para os portugueses é uma flor de significado invulgar.
E a marchinha que foi executada por essa banda foi a única música que se ouviu durante todo o cortejo. Sim, pode parecer estranho, mas não há música nos carros. Não há trio elétrico, nem coisa assim. Percebi que isso acaba aguçando os sentidos para a percepção de outras coisas. Além de tudo, a energia da festa prescindia de qualquer música. Eis algumas cenas da parada mais silenciosamente barulhenta que eu já vi.
Não sei se é possível ver, mas de cima dos carros era distribuído bebida e comida para quem quisesse. Sim, os alunos se capitalizam durante o ano e distribuem tudo de graça durante o cortejo.
Para os veteranos que se estão despedindo da universidade, o traje acadêmico ganha um colorido especial. Eles formam um tipo de "velha guarda", usando cartola e bengala nas cores de cada curso. Guardam também uma flor na lapela do traje e nas mãos, que lhes são entregues por seus familiares que assistem orgulhosos a tudo aquilo.
Há um costume de se oferecer a bengala para quem quiser desejar sorte à nova vida do formando. Basta bater três vezes com ela na cartola do felizardo. A "violência" é seguida de três carinhosos beijinhos.
Não foi por falta de música que se deixou de dançar e cantar.
Lá pelas tantas, quando comecei a acompanhar o cortejo em direção à "Baixa", às margens do rio Mondego, olho para um dos carros e vejo aquela senhora. Não acreditei no que vi. Esfreguei os olhos e era ela mesma. Reconheci pela fita no cabelo. Estava agora completamente nua a pular e dançar com os alunos. Não precisava mais passar a mão pelo queixo de ninguém para arrancar sorrisos, e nessa altura, gargalhadas. Vi que ela às vezes soprava de cima de um carro e assim que as pessoas respiravam seu hálito, o semblante clarificava-se. Olhei à volta e só via sorrisos e contentamento.
A partir daí não a perdi mais de vista. De quando em vez ela descia do carro, dançava entre os alunos, rodopiava entre suas bengalas, tirava-lhes as cartolas, beijava os seus pais (deixando-os mais orgulhosos), animava as crianças e os idosos. Algumas poucas pessoas lhe viravam a cara, achando aquilo tudo pornográfico demais. Nos moralistas não havia sorrisos!
Em certa hora, uma amiga invejosa daquela senhora despudorada veio para estragar a festa. Era a desgraça, que muitos não gostam nem de pronunciar seu nome. Resolveu, por pura inveja daquela alegria toda, atear fogo em um dos carros. Quando a fumaça subiu e a felicidade viu aquilo, tratou logo de chamar uns anjos vestidos de vermelho. Após momentânea interrupção, a ação rápida dos Bombeiros fez o cortejo recomeçar. Acho que nesse dia abriu-se a caixa de Pandora em Coimbra!
No fim da tarde, quando eu já estava junto ao Mondego e os carros estavam sendo recolhidos, percebi que a felicidade retirou-se discretamente. Ela olhava para trás, vendo uma multidão de extasiados deitados na grama e alguns até pulando dentro do rio. Eu tinha bebido um pouco, e estava ainda sob o efeito dos seus sucessivos sopros e afagos. Mas tenho certeza de que a vi caminhando ao longo do rio. Não estava mais nua. Usava novamente o vestido de seda branco. Reparei que ela tinha deixado cair a fita do cabelo. Corri ao seu encontro. Abaixei para pegar a fita, pois queria devolver-lhe e agradecer por ter deixado a festa, tão assim, feliz. Mas ao me levantar vi apenas o rio, plácido, silencioso e refletindo os últimos raios de sol.
Naquele momento lembrei-me de como sentia-me nas quartas-feiras de cinza, após dias de uma felicidade igualmente pornográfica. Questionei-me também se tudo que tinha visto naquele dia não passava de um delírio. Mas se de fato foi, o surto repetiu-se e ela não apareceu nua só para mim. Um poeta teve o mesmo desvario, expresso, claro, de forma muito mais competente nesse feliz poema.
A Felicidade
Vinicius de Moraes
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como uma pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar
A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra trazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranquila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor
A felicidade é uma coisa boa
É tão delicada também
Tem flores e amores
De todas as cores
Tem ninhos de passarinhos
Tudo de bom ela tem
E é por ela ser assim tão delicada
Que eu trato dela sempre muito bem
Tristeza não tem fim
Felicidade sim
A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite, passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo por favor
Pra que ela acorde alegre com o dia
Oferecendo beijos de amor
domingo, 6 de maio de 2012
(Nossa?) Língua Portuguesa
FILIPA: Olá, Nuno, peço desculpas pelo atraso, mas a carrinha quebrou. Acho que foi o travão.
NUNO: Que nada, se calhar ainda nem começou a aula. Trouxeste a sebenta e o agrafador?
FILIPA: Sim, está tudo aqui. Aliás, muito gira a sua sebenta! Tu viste aquela banda desenhada que te falei?
NUNO: Qual?
FILIPA: Aquela, que eu disse-te que era fixe.
NUNO: Sobre os miúdos?
FILIPA: Isso, essa mesma. Desta vez meteram-se em confusão em outro sítio, num comboio.
NUNO: O que houve?
FILIPA: Ouve lá, ó pá. Tudo começou quando um puto, depois de comer um prego com piri-piri, precisou ir à casa de banho. Entrou no rabo da bicha e, passados cinco minutos, entrou tão rápido que avariou o autoclismo. Foi água pra todo lado.
NUNO: Peço desculpas, mas isso é uma bacorada.
FILIPA: Contando pode não ser porreiro, mas é porque não viste como retrataram o facto.
NUNO: Como?
FILIPA: Ele estava todo molhado, com a ganga no chão e sentado na retrete.
NUNO: Continuo achando isso nada giro.
FILIPA: Tu és mesmo um totó.
NUNO: Ah, vai comer palha!!!
NUNO: Que nada, se calhar ainda nem começou a aula. Trouxeste a sebenta e o agrafador?
FILIPA: Sim, está tudo aqui. Aliás, muito gira a sua sebenta! Tu viste aquela banda desenhada que te falei?
NUNO: Qual?
FILIPA: Aquela, que eu disse-te que era fixe.
NUNO: Sobre os miúdos?
FILIPA: Isso, essa mesma. Desta vez meteram-se em confusão em outro sítio, num comboio.
NUNO: O que houve?
FILIPA: Ouve lá, ó pá. Tudo começou quando um puto, depois de comer um prego com piri-piri, precisou ir à casa de banho. Entrou no rabo da bicha e, passados cinco minutos, entrou tão rápido que avariou o autoclismo. Foi água pra todo lado.
NUNO: Peço desculpas, mas isso é uma bacorada.
FILIPA: Contando pode não ser porreiro, mas é porque não viste como retrataram o facto.
NUNO: Como?
FILIPA: Ele estava todo molhado, com a ganga no chão e sentado na retrete.
NUNO: Continuo achando isso nada giro.
FILIPA: Tu és mesmo um totó.
NUNO: Ah, vai comer palha!!!
Se você é um falante da Língua Portuguesa e teve alguma dificuldade em entender o fictício diálogo acima, provavelmente é porque sua nacionalidade difere do adjetivo que batiza o idioma. Trata-se de um diálogo perfeitamente compreensível para um português, mas, à primeira vista, muito estranho para um brasileiro.
Quando vim para cá, imaginei que seria acolhido de braços abertos pela minha "língua mãe gentil". Iludi-me com a frase de Pessoa, "Minha pátria é a Língua Portuguesa", achando que teria aqui dupla nacionalidade linguística. Afinal, desde quando, em tenra idade, por meio dela comecei a descobrir o mundo, acostumei-me aos seus sons, carinhos e gracejos. Por motivos óbvios (e de sobrevivência) tudo começou com vocábulos não muito corretos: "papa", "mamã", "dá", e alguns outros sons guturais. Se eu forçar bem a memória, acho que isso foi por conta de alguns adultos que a mim se dirigiam com palavras estranhas, distorcidas e proferidas de um jeito muito estranho: "que-cute-cute-o-bebê-da-mamã", "ti-nenê-qué-papá?"... Depois fui vendo que se tratava apenas, por parte deles, de excesso de carinho e afeto. As coisas que por meio dela iria ainda aprender estavam mais à frente, não necessariamente isentas de carinho e afeto, mas com beleza e riqueza que até hoje me surpreendo.
À medida que os anos iam em mim atuando, passei a descobrir sua potencialidade semântica, sintática, gramatical e poética. O desabrochar de metáforas, metonímias, aliterações e outras figuras de linguagem enchiam-me de encanto e deslumbramento. Assim que fui sendo apresentado a seus filhos mais ilustres: Machado de Assis, Olavo Bilac, Graciliano Ramos, José de Alencar, Gonçalves Dias, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Nélida Piñon... (uma grande família); senti-me orgulhoso de tê-los como irmãos. E a descoberta de novos meio-irmãos lusitanos deixou-me tão extasiado quanto: Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Florbela Espanca, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, José Saramago...
E ela não me cansa de fascinar. Descubro sua beleza renovada e expandida em cada novo livro, artigo, música, exposição, poema, e tudo mais que com ela se pode criar e descrever. Afinal, tudo que há nesse mundo só assim o é, para nós falantes da Língua Portuguesa, porque conseguimos expressá-lo (e o entender) por palavras que, articuladas, transformam substantivos, adjetivos, advérbios, frases e orações em ideias, pensamentos, sentimentos, poesias, textos de blog...
Ela é tão gentil, e tão generosa, que por meio dela sou capaz de conhecer suas amigas e ter assim outras mães. Melhor, madrastas, como estão sendo a Língua Inglesa (descolada e popular) e, mais recentemente, a Língua Alemã (essa tão dura e severa, mas muito culta!). Com elas posso até sentir certo acolhimento e conseguir conversar com seus filhos legítimos, mas carinho e afeto de verdade só com a língua-mamãe. Com ela sou pleno, com as madrastas, limitado!
Olha, eu gosto tanto dela e me sinto tão orgulhoso de tê-la como minha língua-mãe, que às vezes fico imaginando ter nascido de outra, só para saber como é o som de sua voz pronunciando palavras cujo sentido desconheço. Como é para mim a voz de suas amigas lá da Rússia e da República Tcheca.
Mas não seria agora, portanto, já prateando a fronte, que ela iria novamente ser uma estranha para mim. Assim que cheguei aqui em Portugal (e isso está registrado nos anais deste blog), vi-me em situações que não a compreendia. Quer seja pelo uso e sentido diferenciado de algumas palavras (colocadas propositalmente no diálogo que abre este post), quer seja por um sotaque absolutamente diferente (confesso que até certo ponto charmoso e cerimonioso), senti-me uma cria rejeitada. Um estranho em outro país tudo bem, mas não poderia ser um estranho da minha mãezinha que tudo me ensinou.
Depois vi que se tratava apenas de coisa minha. Um certo complexo de Édipo. Quem eram aquelas pessoas estranhas que agora queriam tomá-la de mim? Na verdade ela continuava lá, paciente, apenas esperando que eu superasse o complexo. Depois de alguns meses de análise consegui aceitar a partilha e hoje convivo harmoniosamente com meus meio-irmãos lusitanos.
Mas antes de nos parir, como será que foi a vida da nossa querida língua-mãe-portuguesa? Sobre sua infância e juventude, pouco se tem registro. Sabe-se que veio de uma família enorme (parece que de sobrenome "latim", mas que já morreu faz tempo). Só após seu casamento é que ela se mostrou em seu vigor e maturidade. Casou-se com Luis Vaz de Camões e com ele teve um filho. Deram-lhe o nome de "Os Lusíadas". A partir daí a prole não parou de crescer e se espalhou mundo afora.
Ora, pensando bem, se há filhos bastardos nessa história, somos nós brasileiros. Os portugueses foram os primeiros paridos. Não foi aqui em Portugal que ela nasceu? É só olhar o seu sobrenome, registrado em cartório e tudo. Depois é que ela foi dar uma volta (ao mundo), respirar novos ares, e se enamorou de terras distantes, deixando nelas filhos que se emanciparam, mas nunca deixaram de respeitá-la e lhe pedir a benção. No Brasil, pelo menos, ela ficou uma mãe morena, muito em razão do sol dos trópicos e da mistura de raças dos filhos que ela acolheu. Depois de parir o portugueses, acho que ela é para nós como uma avó, doce e serena!
Mas esperá lá, ó pá! Mãe, avó, madrasta... Como é que fica o título deste texto? Podemos então todos nós chamá-la de nossa Língua Portuguesa? Claro que sim, então não dizem que em coração de mãe sempre cabe mais um...
Mesmo com suas variações, que servem apenas para lhe dar ainda mais charme e riqueza, ela é NOSSA: de 11 milhões de portugueses, de 190 milhões de brasileiros, de 17 milhões de angolanos, de 21 milhões de moçambicanos, de 1,6 milhão de guineenses, 500 mil cabo-verdianos, 160 mil são-tomenses, 1,1 milhão de timorenses e de 550 mil macaenses. Somos todos irmãos por parte de mãe!!!
Nossa e de quem mais quiser...
Ela sempre será uma ótima madrasta: generosa, culta, bela e amável. Mas chamar-lhe de mãe, de mãezinha, só mesmo para aqueles 240 milhões de afortunados!
Viva a NOSSA Língua-mãe Portuguesa!!!
Nossa e de quem mais quiser...
Ela sempre será uma ótima madrasta: generosa, culta, bela e amável. Mas chamar-lhe de mãe, de mãezinha, só mesmo para aqueles 240 milhões de afortunados!
Viva a NOSSA Língua-mãe Portuguesa!!!
"Não há uma Língua Portuguesa. Há línguas em português"
José Saramago
p.s.1 Hoje, dia 06 de maio, é "Dia da Mãe" em Portugal (sim, aqui é no singular mesmo). Fica aqui a homenagem a todas elas: biológicas, de aluguel, madrastas, avós, linguísticas, de consideração...
p.s.2 Se você é como eu, uma apaixonado pela Língua Portuguesa, o vídeo abaixo pode te interessar (ou emocionar).
p.s.3 No caso da curiosidade ainda persistir, segue o diálogo inicial, agora numa "tradução" livre:
NUNO: Que nada, talvez ainda nem tenha começado a aula. Trouxe o bloco de rascunho e o grampeador?
FILIPA: Sim, está tudo aqui. Aliás, muito legal o seu bloco de rascunho! Você viu aquela estória em quadrinhos que te falei?
NUNO: Qual?
FILIPA: Aquela, que eu te disse que era bacana.
NUNO: Sobre os meninos?
FILIPA: Isso, essa mesma. Desta vez se meteram em confusão em outro lugar, num trem.
NUNO: O que houve?
FILIPA: Ouve só. Tudo começou quando um garoto, depois de comer um sanduíche de carne de boi com pimenta, precisou ir ao banheiro. Entrou no fim da fila e, passados cinco minutos, entrou tão rápido que quebrou a descarga. Foi água pra todo lado.
NUNO: Desculpa, mas isso é uma asneira.
FILIPA: Contando pode não ser bom, mas é porque não viu como retrataram o lance.
NUNO: Como?
FILIPA: Ele estava todo molhado, com a calça jeans no chão e sentado na privada.
NUNO: Continuo achando isso nada interessante.
FILIPA: Você é mesmo um palerma.
NUNO: Ah, vai catar coquinho!!!
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