segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Final mund(ano); hum(ano) novo


Sobrevivemos à previsão de mais um apocalipse. Nem sempre tão preciso em seus prognósticos anteriores, Nostradamus cedeu seu lugar de profeta apocalíptico para uma civilização pré-colombiana da qual o Velho Mundo só tomou conhecimento graças a Colombo e sua trupe de saqueadores do Novo Mundo. Também por conta disso, quase nada sobrou da civilização maia.

Certamente muitos neste mundo nem sabem quem foram os Maias, mas a previsão mal interpretada e descontextualizada do fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012 ganhou projeção incomum. O assunto reacendeu a velha e cansada discussão sobre o fim dos tempos. De uma civilização que nos legou uma complexa cultura, manifestada por sua escrita, arte, religião, matemática e astronomia – notáveis em razão de seu isolamento no continente americano –, deu-se destaque mundial a um calendário que supostamente previa o fim do mundo.

Mas estudiosos da cultura maia afirmam que o calendário, na verdade, previa o fim de um ciclo e o início de uma nova era, algo comum nas civilizações antigas. Não por coincidência, 21 de dezembro é a data de um solstício, ou seja, quando, dependendo do hemisfério da Terra, começa o verão ou o inverno. Além disso, nenhuma outra hecatombe ou meteoro gigante vindo em nossa direção estavam previstos pela ciência para aquela data. A crendice competindo diretamente com a ciência revela ares medievais na pós-Modernidade. Nada de fim do mundo, apenas a História se repetindo, repetindo, repetindo...

Se lançarmos os olhos para o rastro de nossa História, percebemos outras previsões dessa natureza. Diante de contextos de guerras frias, quentes ou atômicas, sempre houve quem anunciasse “o fim da odisseia humana na Terra”, pois se acreditava que o mundo realmente merecia acabar. Ficara mundano demais ou se distanciara dos desígnios divinos. Nessas épocas, nunca faltaram oportunistas fundamentalistas para proclamar que era chegada a hora do juízo final. Até hoje assistimos, incrédulos, a grupos que se isolam em templos ou bunkers aguardando o fim do mundo. Uns estocam comida, outros cometem suicídio coletivo. A histeria contagia os que não estão preparados para o recomeço, para uma nova vida, para uma nova era. Seja neste ou noutro mundo.

O tema é tão caro à imaginação humana que, previsto ou não, o fim apoteótico do mundo movimenta as artes. Dos filmes catástrofes às letras de canção, inquieta-nos saber sobre nosso comportamento diante do fim iminente ou sobre o que virá depois. Morremos de medo de ter o mesmo fim dos dinossauros. Um meteoro ou um ataque alienígena destruindo a Terra: sim, há vários filmes com esse enredo. Nosso complexo de dinossauro rende pirotecnias cinematográficas, talvez visualmente interessantes, mas quase sempre pateticamente concebidos. Conheço uma exceção: “Melancolia”, de Lars von Trier. Diante do mesmo argumento – de um meteoro prestes a colidir e destruir com a Terra – acompanhamos os últimos dias de duas irmãs. Justine não se adapta às regras sociais, desiste do casamento no dia da festa e sofre de profundas crises de depressão. Claire é mãe, muito “bem casada” e ama a confortável vida que leva em uma pacata cidade do interior. A libertação de uma e o apocalipse mental da outra mostram um fim do mundo subjetivo e, por conta disso, mais complexo e interessante.

As conjecturas musicais acerca do fim do mundo costumam ser mais sutis. O apelo visual é compensado por canções que recorrem a letras metafóricas e a inventivos acordes e melodias. Lembro-me de dois exemplos pitorescos que brincam e nos fazem refletir sobre o armagedom. Assuntos sérios podem render humoradas reflexões.

Em 1938 o compositor carioca José de Assis Valente (1911-1958) compôs a canção “E o mundo não se acabou”. Naquele ano o mundo preparava-se para entrar nas trevas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Sem ter ainda a exata noção do eclipse para o qual se encaminhava a humanidade, a sensibilidade do artista colocava a questão, cantada por intérpretes do quilate de Marlene e Carmem Miranda. Aos meus ouvidos a canção chegou por meio da interpretação de Adriana Calcanhoto: “Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar / Por causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar...”.

Angustiado, desiludido, e de certa forma liberto das convenções e limitações morais, o compositor desabafa: “Acreditei nessa conversa mole, achei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir e sem demora fui tratando de aproveitar / Beijei a boca de quem não devia / Peguei na mão de quem não conhecia / Dancei um samba em traje de maiô / E o tal do mundo não se acabou”. Pobre do Assis Valente, que não honrou seu sobrenome e decidiu acabar com o seu próprio mundo em 1958. Suicidou-se em razão de dívidas. Imortalizou-se pela música.

Outra canção sobre o apocalipse é recente. Trata-se da conhecida composição de Paulinho Moska, “O último dia”, de 1995. Aqui o contexto é de término da Guerra Fria. O mundo vivera bastantes anos sob a ameaça de se acabar de um dia para o outro. Com potencial atômico para tal – “A Rosa de Hiroshima” havia deixado seu perfume fétido pelo mundo –, desde o término da Segunda Guerra Mundial até a queda do Muro de Berlim, em 1989, vivia-se o medo do tênue desequilíbrio entre as duas grandes potências mundiais, a então URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e os EUA. Sem nunca se enfrentarem diretamente, temia-se que uma delas apertasse um simples botão, para que ogivas nucleares e mísseis atacassem a outra. O problema é que essa não era uma guerra interplanetária. Se a guerra esquentasse de fato, talvez houvesse poucos sobreviventes neste planeta.

Como um sobrevivente desta “guerra”, Paulinho Moska poeticamente pergunta: “Meu amor, o que você faria se só te restasse um dia? / Se o mundo fosse acabar / Me diz o que você faria”. Assim como Valente, Moska voa na imaginação e liberta-se moralmente: “Andava pelado na chuva / Corria no meio da rua / Entrava de roupa no mar / Trepava sem camisinha... / Abria a porta do hospício / Trancava a da delegacia”. Mas a comparação entre os compositores para por aí. Paulinho Moska aguentou firme seus fantasmas e angústias e continua, assim como nosso mundo, testemunhando a sucessão de dias e noites.

Vencida mais uma previsão do fim da Terra, esta, como disse Caetano Veloso, continua a viagem “que realizas do nada, através do qual carregas o nome da sua carne”. Quem sabe um dia a viagem se interrompa. A cena clássica de um meteoro vir na nossa direção e acabar com tudo tem impacto e apelo popular. Mas diante do que temos feito ao nosso planeta talvez não tenhamos a “sorte” dos dinossauros. A continuar assim, o fim do mundo muito provavelmente não será instantâneo, mas longo e doloroso. A imagem da destruição apocalíptica bem que poderia ser substituída pela de um mundo-UTI, na qual seremos todos pacientes terminais, doentes de corpo e de alma, sedentos de água, compaixão e fé.

Mas tudo isso são confabulações, filmes e canções. Por esses dias o que acabou mesmo foi o ano. Como milhares de outros astros e planetas, começamos outro ciclo de uma volta ao redor do sol. E com ele, os humanos que vivem neste minúsculo planeta igualmente se repetem. Promessas, planos, dietas; tudo muito firme nos primeiros dias, mas ao longo do novo ciclo anual, muito terá se perdido na poeira cósmica de nossas existências.

Mas não sejamos tão rigorosos, somos hum(anos), falíveis, imperfeitos. Imperdoável mesmo é não (ao menos tentar) cuidar de nós mesmos, dos outros, do nosso mundo, da nossa cidade, da nossa rua, da nossa casa. Perante uma vida mutável e dinâmica, inconcebível é ficarmos parados, como disse Raul Seixas, sentados no “trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Ou assistirmos passivos à sucessão de mais um ano, dentro do aconchegante espectro de prazeres e afazeres cotidianos. Para quem permanece o mesmo e não deseja a mudança, o mundo não precisa de previsões apocalípticas. O que não muda já chegou ao seu fim.

Mas se você não chegou ao seu fim, boa viagem! Que a próxima jornada ao redor do astro rei seja da realização de um hum(ano) novo, melhor e atento às necessárias mudanças, pessoais e mundanas. Neste novo ciclo, resta-nos o mundo todo pela frente. Até que um crepuscular meteoro nos acerte e leve nossas almas, uma a uma e no seu devido tempo, para outro mundo. Mas essa já é outra história, para um tempo, torçamos, bem distante de 2013.


Faixa bônus:
vídeos das canções citadas no texto e o trailer do filme Melancolia.