quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 de abril


"...Liberdade, essa palavra
que o sonho humano alimenta
que não há ninguém que explique
e ninguém que não entenda..."
                                                                       Cecília Meireles


Hoje faz um dia chuvoso e é feriado nacional em Portugal.

Esqueça o dado meteorológico (desabafo de quem vive há mais de uma semana debaixo chuva em Coimbra) e fiquemos com o feriado. Diante da importância que essa data tem para os portugueses, sinto-me um pouco envergonhado em desconhecê-la até então. Antes de aqui estar, meus conhecimentos sobre a história de Portugal eram limitados, grosso modo, ao período que vai da nossa "descoberta" enquanto país até 1822, quando nos tornamos então "independentes". Sobre acontecimentos recentes de Portugal, pelo menos os ocorridos no século XX, confesso a minha relativa ignorância. Mas sorte nossa que sempre há tempo para aprender, falta-nos às vezes disposição e oportunidade. No meu caso, essa última engendrou aquela e eu agora descubro que essa data tem para os portugueses um profundo significado de LIBERDADE!

Sim, os proféticos ideais revolucionários franceses de igualdade, liberdade e fraternidade, apesar de esmaecidos, estão sempre a orientar e motivar a humanidade a evoluir, inspirando revoluções mundo afora desde 1789. Inspirou também a arte, que especificamente sobre a liberdade, produziu um dos quadros mais belos e poderosos que já vi. Pela pertinência, merece a reprodução, que aqui empobrece o impacto de vê-lo nas dimensões originais:

                                          "A liberdade guiando o povo" - Eugène Delacroix (1830)
                                                         Dimensões: 260 cm x 325 cm              Museu do Louvre

Pena que nem sempre se trata de uma evolução linear e nunca estamos imunes a retrocessos, a fracassos e à ação de aproveitadores de toda ordem. Quando olhamos para traz, tudo parece que caminha de fato "com passos de formiga e sem vontade".  A não ser em épocas revolucionárias, nas quais aqueles ideais tomam conta e contagiam o "espírito do povo" de tal forma que não há fuzis nem baionetas que impeçam o seus passos de elefante. Depois, com os "mecanismos de dominação" atuando novamente, com a ação delével do tempo, com a vida cotidiana que todos tem de levar (sem a paixão inflamada própria da revolução); voltamos a ser formigas e tudo tende a se estabilizar, a se acomodar nos dias, meses e anos. Talvez por isso é que a celebração de datas como o "25 de abril" seja tão relevante e merecem a dimensão de feriado nacional. Para aquecer a memória e o espírito morno com os quais vivemos egoisticamente nossas vidas. O direito à memória: nada mais atual e caro ao Direito.

Mas se você também não sabe o que ocorreu aqui em Portugal no dia "25 de abril" de um ano qualquer, o que se segue talvez possa te interessar. Se já sabe, convido-o a ler minhas reflexões e digressões sobre essa data. Vá lá, mal não podem fazer!

Pois bem, a intenção não é dar aula de história, mas para entender o que de fato significa o "25 de abril" para Portugal é preciso saber que em 25 de abril de 1974 houve aqui uma revolução política, que depôs o regime ditatorial de Antônio de Oliveira Salazar, instalado em 1933. Como todos sabem, para ficar num eufemismo, não há rima (política) entre ditadura e democracia. Apesar de alguns políticos populistas tentarem "harmonizá-las", são palavras que denotam regimes políticos incomunicáveis, pois o poder político centralizado (em uma pessoa ou num grupo de pessoas) e imune à opinião pública nunca pode ter a chancela de democrático.

E, de 1933 a 1974, Portugal foi uma ditadura. Não de característica militar, como quase que instintivamente nós brasileiros associamos como complemento dessa palavra. Salazar não era militar, era um catedrático, um brilhante professor universitário. Doutorou-se e lecionou na Universidade de Coimbra. Desde que aqui cheguei ouço falar, quase que como uma lenda, que ele está no seleto grupo de doutores que se formou com a nota máxima. Acreditem, esse é um feito que, em mais de 700 anos da universidade, repetiu-se muito poucas vezes. Ele foi Ministro das Finanças na época da primeira república em Portugal e conseguiu equilibrar as finanças desde há muito um caos. Por conta disso, foi considerado um tipo de "salvador da pátria" (humm, já viu onde isso vai dar...) e em 1933 foi empossado como Presidente do Conselho de Ministros (algo como um Primeiro Ministro), cargo lhe dava amplos poderes ditatoriais, exercidos até 1968, dois anos antes de sua morte.

Mas como ocorre em todas as ditaduras, militares ou não, houve severas restrições às liberdades (física, política, de expressão...) das pessoas. Tudo era vigiado (patrulhado) e caso algo fosse "contrário ao governo" era censurado ou, uma vez delatado, "desapareciam" com ele. Nada escapava: músicas, filmes, livros, etc. Nisso, militar ou catedrática, toda ditadura é igual. Influenciada (e inspirada) pelos regimes totalitários de sua época (Alemanha, Itália, Espanha), a ditadura de Salazar era orientada por princípios conservadores e autoritários: "Deus, Pátria e Família".

Como igualmente ocorre com todas as ditaduras, um dia elas acabam. E a começada por Salazar acabou no dia 25 de abril de 1974. Por ironia do destino, uma revolução feita por militares, mobilizada pelo chamado "Movimento das Forças Armadas", composto por oficiais intermediários (capitães). Um movimento que começou nas Forças Armadas como reivindicação corporativista (muitos militares haviam lutado em guerras nas colônias portuguesas na África e reivindicavam mais prestígio) e recebeu grande apoio da população, notadamente dos jovens estudantes, à época recrutados para lutarem nas guerras coloniais africanas.

No quadro mencionado acima, "A liberdade guiando o povo", não é despropositado que a figura feminina que representa esse valor esteja empunhado uma arma. Não há revolução sem força, mesmo que dela não se faça o uso, de fato, mas deve haver a força, mesmo que em potencial. E na revolução de "25 de abril", o descontentamento da população encontrou, nas Forças Armadas, as armas que lhes eram necessárias para planejar e executar a revolução e democratizar o país. Militares e democracia? Sim, apesar de inusitado, isso ocorreu e nos mostra que, para se fazer uma revolução, busca-se a força onde quer que ela esteja.

Sobre a execução da revolução, muito interessantes (quase cinematográficos) foram os preparativos na noite do dia 24 de abril. Entre os militares, ficou acordado que haveria duas senhas para que a revolução fosse iniciada e as tropas ocupassem de fato os principais pontos estratégicos do governo.

Primeiro, às 22:55h do dia 24 de abril, foi transmitida pelo rádio a canção "E depois do adeus" (famosa por ter vencido o célebre Festival RTP da Canção). Era a senha para as tropas se prepararem e ficarem a postos. À meia-noite e vinte do dia 25 de abril foi transmitida pelo rádio uma segunda canção, chamada "Grândola, Vila Morena" (uma canção sobre o sentimento de comunidade e de fraternidade de uma vila da região do Alentejo, que foi banida e censurada (a canção) pelo governo de Salazar como sendo de orientação "comunista"). Essa era a segunda e derradeira senha para as tropas saírem dos quarteis e iniciarem as operações militares da revolução. Ambas as canções, em especial a última, transformaram-se em hinos à liberdade e à memória da revolução.

O que ocorreu após a transmissão da segunda canção está registrado em emblemáticas fotos e vídeos da população tomando as ruas de Lisboa e, junto com as tropas (muitas vezes em cima dos tanques e "em comunhão" com os militares, em cenas incomuns em revoluções políticas), ocupando todas as sedes dos poderes do Governo. Depôs-se, sem grandes embates armados ("apenas" 04 pessoas morreram, em virtude de tiros disparados pela polícia política do governo deposto) ou qualquer resistência, um governo ditatorial de 41 anos.






Há um "nome fantasia" para a revolução de 1974: denominaram-na "Revolução dos Cravos". Segundo se conta, uma florista começou a distribuir cravos vermelhos à população que saía às ruas no dia 25 de abril. Deram-nos aos militares, que por sua vez os colocaram nos canos dos fuzis, numa imagem poética que batizou a revolução.



Em 1974, um país a um oceano de distância de Portugal ainda vivia sua ditadura, essa sim, militar. E quem mais soube falar (não falando) sobre as dificuldades de se viver sob a ditadura militar brasileira foi um cantor e poeta. Tentando driblar a censura com suas músicas de letras engenhosas, Chico Buarque foi o gênio que, em uns poucos versos de uma música chamada "Tanto Mar", conseguiu dizer aquilo que era importante e que certamente não poderia ser dito "com todas as letras" por quem estivesse no Brasil em 25 de abril de 1974.

Conhecendo agora essa "pequena" história sobre revolução, liberdade e cravos, tudo passa a fazer sentido na "ingênua" canção de Chico Buarque. As palavras realmente encontram o seu significado no contexto em que são empregadas. E num sistema autoritário/ditatorial, o contexto não é algo partilhado, não é um "texto com", é um "texto sem", sem participação, sem diversidade, sem liberdade.

E no "texto" que se lia no Brasil em 1975, descobriram algo de "diferente" na letra de Tanto Mar e ela foi vetada pela censura. Vai saber por quê! O que pode haver de errado com uma canção que fala de uma festa, de mar, de cravos e alecrins?

Acho mesmo é que delataram o Chico...


Tanto mar 
Chico Buarque 
1975
(primeira versão)* 


Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

* Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975. 
1978
(segunda versão)


Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim 


p.s. Se você chegou até aqui, como recompensa, indico os dois vídeos abaixo. O primeiro com um Chico moço, falando e cantando o "25 de abril" português. O segundo é um trecho do belíssimo filme "Fados", de Carlos Saura, também com Chico, agora maduro. Esse vídeo começa ao som de "Grândola, Vila Morena", a canção/senha derradeira para a revolução.
Em ambos os vídeos há cenas da poética e celebrada "Revolução dos Cravos". São emocionantes!!!

Tanto Mar - Chico Buarque

Fado Tropical - Chico Buarque